admin, Autor em Nabil Bonduki https://institucional.nabilbonduki.com.br/author/admin/ Arquiteto, urbanista, professor universitário Wed, 14 Aug 2024 18:33:50 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=6.6.1 https://institucional.nabilbonduki.com.br/wp-content/uploads/2020/10/cropped-favicon-32x32.png admin, Autor em Nabil Bonduki https://institucional.nabilbonduki.com.br/author/admin/ 32 32 Origens da habitação social no Brasil: Arquitetura moderna, Lei do Inquilinato e difusão da casa própria https://institucional.nabilbonduki.com.br/2020/10/17/origens-da-habitacao-social-no-brasil-arquitetura-moderna-lei-do-inquilinato-e-difusao-da-casa-propria/ Sat, 17 Oct 2020 19:57:18 +0000 https://nabilbonduki.com.br/?p=150 Analisando de forma interdisciplinar a história da habitação popular no país no período pré-1964, Origens da habitação social no Brasil constitui um extenso estudo das origens do nosso crescimento urbano, abordado em seus aspectos arquitetônico, urbanístico, sociológico, de história econômica e da arquitetura. A pesquisa original de Nabil Bonduki para Leia mais…

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Analisando de forma interdisciplinar a história da habitação popular no país no período pré-1964, Origens da habitação social no Brasil constitui um extenso estudo das origens do nosso crescimento urbano, abordado em seus aspectos arquitetônico, urbanístico, sociológico, de história econômica e da arquitetura. A pesquisa original de Nabil Bonduki para a publicação, desenvolvida ao longo de dezoito anos, somou-se à sua experiência política como gestor dos programas habitacionais de São Paulo na gestão de Luiza Erundina. Com o crescimento dos estudos nas áreas de história do urbanismo e da cidade, a análise proposta em Origens se tornou um marco na pesquisa brasileira nas áreas de urbanismo e arquitetura social. Nesta 7ª edição, o livro traz um prefácio inédito do autor, cobrindo as mudanças ocorridas de 1995 até os dias de hoje. O aumento exponencial do número de escolas de arquitetura, o apoio a pesquisas científicas na área e a entrada da busca pelo direito à habitação na agenda dos arquitetos e urbanistas foram algumas delas. Neste prefácio, Bonduki faz uma avaliação também das políticas públicas para a habitação social nos anos recentes.

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O modelo de desenvolvimento urbano de São Paulo precisa ser revertido https://institucional.nabilbonduki.com.br/2020/10/17/o-modelo-de-desenvolvimento-urbano-de-sao-paulo-precisa-ser-revertido-2/ Sat, 17 Oct 2020 17:39:42 +0000 https://nabilbonduki.com.br/?p=87 Estudos Avançados versão impressa ISSN 0103-4014 Estud. av. vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011 https://doi.org/10.1590/S0103-40142011000100003  RESUMOEste artigo objetiva apontar as principais alterações que são necessárias no modelo de desenvolvimento de São Paulo, com base nos objetivos definidos no Plano Diretor Estratégico, em vigor desde 2003. A continuidade do modelo que há décadas orienta as políticas urbanas na cidade Leia mais…

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Estudos Avançados
versão impressa ISSN 0103-4014
Estud. av. vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011
https://doi.org/10.1590/S0103-40142011000100003 

RESUMOEste artigo objetiva apontar as principais alterações que são necessárias no modelo de desenvolvimento de São Paulo, com base nos objetivos definidos no Plano Diretor Estratégico, em vigor desde 2003. A continuidade do modelo que há décadas orienta as políticas urbanas na cidade – baseado na expansão ilimitada da mancha urbana, na prioridade para o automóvel, na excessiva impermeabilização do solo, no esvaziamento demográfico nas áreas consolidadas, nos processos imobiliários tradicionais e na formação de periferias carentes de infraestrutura, serviços e empregos – levará a cidade para uma condição de insustentabilidade, agravando as condições caóticas já presentes. O texto mostra que existem opções consistentes, mas que sua aplicação exige aprofundar o planejamento participativo, mobilizando a sociedade, pois a mudança de um modelo fortemente arraigado contraria interesses consolidados.

Palavras-chave: Planejamento, Plano Diretor, São Paulo, Uso do solo, Desenvolvimento urbano.


ABSTRACTThis article aims to point out some of the main changes needed in São Paulo’s development model, according to the goals defined in the city’s Strategic Master Plan, in force since 2003. The continuance of the model that has guided urban policies in the city for decades – based on the unlimited expansion of the urban footprint, on the primacy of the automobile, on increasing soil imperviousness, on the depopulation of consolidated regions, on ingrained but outmoded processes of real estate development, and on the creation of outlying peripheries lacking infrastructure, services and jobs – will lead the city to an unsustainable situation, aggravating its already existing chaotic conditions. The text shows that consistent alternatives do exist, but that their implementation would require increased participatory planning and societal mobilization, because changing a deeply ingrained model runs counter to well-entrenched vested interests.

Keywords: Planning, Master Plan, São Paulo, Land use, Urban development.


Apresentação

O urbanismo sempre caminhou na corda bamba, entre ser prática profissional, disciplina científica ou utopia. Desde as cidades ideais do Renascimento, passando pelo socialismo utópico de Owen e Fourrier do início

do século XIX – que nada mais era senão planos de cidades imaginárias – e chegando ao urbanismo moderno, das vanguardas à Carta de Atenas, sonhar com ambientes habitáveis livres da desigualdade, com equilíbrio entre o ambiente construído e a natureza, onde pudesse reinar a paz, a solidariedade, a igualdade, a cidadania e a tranquilidade sempre foi o motor que impulsionou o debate de ideias novas para impulsionar o desenvolvimento urbano.

No final do século XX, porém, parecia que as energias utópicas tinham desaparecido do imaginário da sociedade e da cidade do futuro. O urbanismo estava se tornando marketing urbano, uma prática a serviço do mercado. A derrocada do falso socialismo soviético, o desencanto com ideologias transformadoras que empolgaram várias gerações desde o Iluminismo e a Revolução Francesa, a predominância do materialismo consumista, o vigor do mercado, regido pelas ideias neoliberais, e a falsa crença de que a ciência poderia prever e determinar tudo o que irá acontecer estavam levando nosso tempo, inexoravelmente, a esse apagão de energias utópicas, que foi chamado de “fim da história”.

Passou a vigorar uma descrença de que seria possível reverter, com ações coletivas, processos em curso, levando o cidadão a buscar em soluções individuais as respostas para as questões que o preocupam, situação que é particularmente forte no Brasil. O risco de violência é enfrentado com segregação e confinamento; a precariedade do transporte coletivo com o automóvel individual; a depredação ambiental com a criação de uns microcosmos de verde junto ao condomínio; a poluição do ar, com fins de semana na serra ou à beira mar; a água maltratada com garrafas pet de mineral. Soluções insuficientes a que apenas os estratos altos e médios podiam ter acesso. Para o restante da população, restava a barbárie. A criação de guetos protegidos dos males da metrópole (condomínios fechados, carros blindados, shoppings policiados, ambientes vigiados) parecia ser a única saída para superar um ambiente urbano pouco acolhedor e agressivo.

Esse clima modificou-se na primeira década do século XXI. O 11 de Setembro de 2001 representou, simbolicamente, a ruína da falsa noção de segurança que os guetos estritamente vigiados pareciam garantir. A onda de assaltos a condomínios e shopping centers, que se tornou rotina em São Paulo, mostra que a lógica da segregação não garante segurança. A crise mundial do capitalismo de 2008/2009 expôs o que já sabíamos, ou seja, que o mercado não pode correr solto, sem uma forte presença reguladora do Estado, o que desmontou os que, no Brasil, ainda defendiam uma maior desregulamentação dos processos urbanos. Os desastres climáticos, por sua vez, vêm mostrando que o “desenvolvimento a qualquer custo”, a orgia consumista e o modo de vida vigente no país, com os padrões impostos pelo mercado e assumidos pela classe média são insustentáveis no futuro próximo.

Novas esperanças, contudo, ressurgiram. A criação de novas redes globais focadas na transformação, como o Fórum Social Mundial, com sua máxima “Um novo mundo é possível”, e a articulação de pessoas por meio da internet mostram que a sociedade global dá sinais de vitalidade e de inconformismo. Superando formas clássicas de organização, novas redes mobilizam a sociedade, articulando cidadãos antes isolados, e lançam outros jeitos de construir desejos coletivos. De diferentes maneiras, recupera-se o vigor utópico, elemento indispensável para o renascimento do urbanismo.

Isso porque, sem utopia, não há urbanismo. Ele se reduziria a uma mera prática tecnocrática e burocratizada, enfrentando mais os efeitos do que as causas dos problemas urbanos, e perderia seu impulso transformador. É normal ouvir as pessoas comuns e até mesmo alguns especialistas afirmarem que as grandes metrópoles, sobretudo nos países pobres, não têm jeito. Em São Paulo, isso é muito comum, particularmente nos dias em que enchentes ou congestionamentos-monstro paralisam a cidade e apavoram os cidadãos. Não por outra razão, mais da metade da população, porcentagem que chegou a 65% em 1999, afirma que deixaria a cidade se pudesse.

Superar essa visão pessimista é essencial para que a sociedade possa se engajar na construção de alternativas. Para isso, é necessário recuperar as energias utópicas, uma dimensão passional capaz de convencer os cidadãos de que eles podem mudar processos que parecem imutáveis. Somente quando a população da cidade acreditar que é possível uma substancial alteração do quadro atual, de modo a tornar São Paulo viável do ponto de vista da qualidade de vida do conjunto de seus moradores e do equilíbrio ambiental e urbano, será possível construir esse caminho, que pode parecer utópico, mas que está ao nosso alcance, desde que se criem consensos sobre alguns aspectos fundamentais da vida da cidade e que se articule o poder público, autônomo dos interesses particulares, para coordenar esse processo transformador. Se fosse simples e fácil, não seria uma utopia.

Neste artigo, busca-se abrir um debate sobre alternativas para o desenvolvimento urbano de São Paulo. Ele somente pode ser construído mediante um processo de planejamento participativo, onde o poder público tem um papel fundamental, mas que exige o engajamento da sociedade. Não é fácil enfrentar um modelo urbanístico e um modo de vida que sustentam interesses econômicos sólidos; apenas se a sociedade tomar consciência de que eles são insustentáveis, ele poderá ser revertido.

A metrópole que temos

É evidente que São Paulo, assim como as outras metrópoles brasileiras, não pode continuar crescendo a partir do modelo urbano que hoje vigora. A cidade, no início do século XXI, caminha para o caos, e somente com a alteração desse modelo poder-se-á ter esperança de um futuro melhor.

A desigualdade urbana, funcional e social se aprofunda, gerando uma cidade partida e segregada. A mancha urbana se expande horizontalmente destruindo as áreas de proteção ambiental e gerando, por um lado, assentamentos precários distantes e carentes de infraestrutura, e, por outro, condomínios fechados de média e alta rendas, acessíveis apenas por meio de automóvel. A migração diminuiu e a população cresceu pouco a partir de 1990 (cerca de 0,7% ao ano no município de São Paulo, e 1,65% na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) nos últimos vinte anos), mas de uma forma muito desigual: as áreas mais bem urbanizadas perderam população, enquanto as regiões mais distantes, as áreas de interesse ambiental e os municípios mais pobres da Região Metropolitana continuam com crescimento elevado.

A expansão física é ainda mais grave. O espraiamento horizontal da RMSP tende a criar uma megametrópole quase inteiramente ocupada, reduzindo os espaços verdes ainda não urbanizados entre a região de Campinas, a Baixada Santista, a conurbação de São José dos Campos e a de Sorocaba. O modelo de condomínios fechados de baixa densidade se expande exatamente nessa região, tendendo a eliminar um cinturão verde que ainda existe no entorno da massa urbanizada. O processo colaborará para o aquecimento global, para alterar o comportamento hídrico, com sérias consequências no abastecimento de água e no agravamento das enchentes, além de aprofundar o modo de vida baseado no automóvel individual, única forma de acessar esses assentamentos. Esse modelo de urbanismo é incompatível com o transporte coletivo.

Os 53 distritos do município de São Paulo mais bem urbanizados e dotados de equipamentos e empregos perderam moradores, incluindo os bairros fortemente verticalizados. Áreas dotadas de infraestrutura e oportunidades, que vivem com o trânsito congestionado, se esvaziam de moradores; equipamentos já instalados, como escolas e postos de saúde, passam a apresentar ociosidade, enquanto o poder público é forçado a construir equipamentos nos bairros distantes que se adensam. Escolas fechadas nas áreas mais consolidadas e “escolas de lata” nas periféricas distantes são a imagem desse fenômeno.

A desigualdade territorial tem graves consequências para a mobilidade urbana. No distrito da República, existem mais de seiscentos empregos para cada cem moradores, índice que na Cidade Tiradentes, no extremo da Zona Leste, cai para oito. O deslocamento pendular dos bairros-dormitório para o centro expandido gera a superlotação do sistema viário e de transporte coletivo. Nessas viagens, há quem enfrente terríveis seis horas diárias em coletivos, perdendo, literalmente, um terço de sua vida útil no deslocamento.

A prioridade para o automóvel, que marcou a visão de progresso do século XX, marcada pela implantação de vias expressas e complexos viários, agrava esse problema, pois o sistema viário não comporta os quase sete milhões de veículos cadastrados na RMSP. O trânsito virou o pesadelo dos paulistanos, apesar de a prioridade nos investimentos públicos ter se dirigido para a ampliação do viário em detrimento do transporte coletivo. Não por acaso, o único plano integralmente implantado em São Paulo foi o tristemente famoso Plano de Avenidas, uma proposta de abertura de avenidas radiais e anéis perimetrais que orientou, dos anos 1930 ao final dos anos 1960, as insuficientes obras públicas na cidade.

Edifícios obsoletos, vazios ou subutilizados povoam o centro antigo, abandonado pela elite, onde mais de 18% dos domicílios estavam vagos em 2000. Numa outra paisagem, uma grande quantidade de galpões permanece sem utilização ao longo das orlas ferroviárias, área com grande potencial de transporte coletivo de massa, onde empreendimentos imobiliários começam a ser implantados desvinculados de uma estratégia urbana.

Enchentes são agravadas pela impermeabilização do solo, gerada tanto pela prática oficial, que vigora desde os anos 1930, de implantar avenidas e vias expressas nos fundos de vale, como pela ocupação irregular do solo. A tolerância ou incapacidade de coibir usos e ocupações irregulares marca um desrespeito às normas urbanísticas e ambientais.

Por falta de política e planejamento habitacional, mais de dois milhões de pessoas habitam irregularmente as regiões de proteção ambiental. Recente levantamento realizado pelo IPT mostrou que existem cerca de 110 mil moradias em áreas de risco, a maioria ocupando faixas de saneamento de córregos e encostas íngremes, ou seja, Áreas de Proteção Permanentes, segundo a definição do Código Florestal. Nas três últimas décadas, a população moradora em favelas cresceu em índices muitos superiores aos da população em geral.

Degradação do meio ambiente, desertificação do espaço público e desprezo pela memória urbana e social marcam uma cidade com identidade ameaçada. Calçadas estreitas, obstruídas ou não implantadas, poluição do espaço aéreo, córregos transformados em esgotos e a agressividade dos motoristas tornam ainda mais difícil a vida na cidade. Para garantir acesso às suas garagens, moradores criam degraus nas calçadas e as obstruem com portões que avançam para além do lote privado. Resultado de processos imobiliários formais ou informais ou da falta de civilidade dos moradores, o desrespeito ao espaço público é a regra na cidade.

Será que essa situação pode ser revertida e a metrópole dar a volta por cima, se tornando viável, ambientalmente sustentável, com um novo modelo urbano e um modo de vida mais simples e equilibrado?

Construindo um caminho alternativo: é possível surgir uma nova São Paulo no século XXI?

A utopia de uma cidade mais justa e sustentável, capaz de garantir qualidade de vida para os seus cidadãos e de se desenvolver de modo equilibrado com o meio ambiente pode parecer distante para muitos. “Esta cidade não tem mais jeito” é uma frase que se ouve com frequência em referência ao nosso futuro. A utopia de uma cidade melhor desapareceu do imaginário da população, que preferiria se mudar se isso fosse possível.

Isso, porém, não é fácil: São Paulo oferece um tão amplo leque de oportunidades de trabalho, negócios, lazer e sociabilidade que atraem uma vasta população, incapaz de se desvincular da cidade. Muitos se mudaram para fora da cidade, como para um condomínio fechado situado num raio de cem quilômetros da capital, situação frequente na população de renda mais alta, mas permanecem ligados profissionalmente a ela e passam a viver um cotidiano selvagem de deslocamento casa-trabalho, modelo de vida que exige horas na estrada e no trânsito e vários automóveis em cada domicílio. As entradas da cidade pelas principais rodovias apresentam, nas primeiras horas da manhã, congestionamentos parecidos com as avenidas mais movimentadas.

Os que optam por essa alternativa perdem a riqueza e a diversidade do cotidiano urbano, “onde se respira o ar de liberdade”, como se dizia na Idade Média, e têm que se contentar com a monocórdia e pacata vida entre iguais num território permanentemente vigiado.

A questão básica que precisa ser enfrentada é como reverter o atual modelo de crescimento da megametrópole, baseado na expansão horizontal periférica (de baixa renda) ou dispersa (de média ou alta renda); na verticalização de baixa densidade populacional na área consolidada; no uso intensivo do automóvel; no afastamento entre o emprego e a moradia; na produção exagerada de lixo; na deterioração das zonas mais antigas e de interesse histórico e na ocupação e destruição das áreas de proteção ambiental. Encontrar um caminho que interrompa esse processo e que, gradativamente, possa ser substituído por um novo modelo de desenvolvimento urbano que maximize as potencialidades de macrometrópole e, ao mesmo tempo, minimize os gravíssimos impactos socioambientais que hoje tendem a inviabilizar nosso futuro é o grande desafio.

O Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (PDE), aprovado em 2002, apontou um caminho possível, embora tenha limitações, pois foi resultado de uma ampla negociação com diferentes setores sociais, cujos interesses nem sempre permitem alterações significativas no modelo urbano predominante. Mas ele é um dos mais avançados planos diretores implantados no Brasil no recente ciclo de planejamento marcado pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Cidade (2001), regidos pelos princípios da função social da propriedade, direito a habitação, planejamento participativo e recuperação social da valorização imobiliária gerada pelos investimentos públicos. Os novos instrumentos urbanísticos criados por esse dispositivo legal, entretanto, só podem ser aplicados se previstos nos planos diretores e regulamentados por leis municipais específicas, aprovadas pelas câmaras de vereadores, o que dificulta sua implementação.

Prevendo a utilização desses instrumentos, o PDE apresentou os eixos fundamentais para uma reversão desse modelo de desenvolvimento urbano que predomina na cidade. No entanto, sua implementação tem sido truncada. Embora alguns dos instrumentos previstos e das ações estratégicas por ele previstas tenham começado a ser implantada em 2003, foram interrompida a partir de 2005, com a mudança da administração e, quando foram retomadas parcialmente, não estavam articuladas com uma estratégia global para a cidade.

Apesar disso, hoje existe certo consenso entre os vários setores da sociedade, pelo menos no discurso, em relação à maioria dos principais objetivos do PDE, que são estratégicos e de longo prazo. Para alcançá-los, entretanto, é necessário colocar em prática, no curto prazo, instrumentos, programas e ações estratégicas indispensáveis para gerar os resultados esperados, o que tem sido postergado.

Os desafios para mudar o modelo urbano de São Paulo

Reduzir as desigualdades urbanas é um desafio-síntese para tornar a cidade melhor. O modelo de uma cidade segregada, que tenha guetos que se assemelham à Suíça e enormes territórios com imensas carências e precariedade, deve ser combatido com vigor, implicando priorizar investimentos nas áreas mais carentes e usar os instrumentos tributários e urbanísticos para redistribuir riqueza. A adoção de alíquotas progressivas de acordo com o valor do imóvel, adotada nas regras do IPTU a partir de 2002, é um mecanismo nesse sentido, cobrando mais dos imóveis mais valorizados e isentando os de baixo valor.

A criação da outorga onerosa do direito de construir, ou seja, o solo criado mediante o uso mais intenso da terra, regulamentada pelo PDE, é outro instrumento para estimular a descentralização dos investimentos imobiliários privados. Isso se obtém cobrando pelo solo criado proporcionalmente mais das incorporações localizadas nos bairros consolidados, mais valorizados e procurados pelo mercado, privilegiando as regiões intermediárias e periféricas.

Reduzir as desigualdades também significa aproximar a habitação, incluindo a social, dos empregos e equipamentos, mediante duas ações estratégicas combinadas: levar a urbanização, a regularização fundiária, empregos e serviços para as áreas periféricas, que devem ser estruturadas e qualificadas do ponto de vista urbanístico, e estimular o uso residenciais, com incentivos e subsídios para as rendas mais baixas nas áreas que concentram os empregos – centro expandido e zona sudoeste. Dessa forma, podem-se reduzir a necessidade e o tempo de deslocamento, reduzindo a necessidade de uso do automóvel e meio de transporte motorizado.

Uma qualificação menos desigual dos espaços públicos é fundamental. A grande maioria dos parques bem estruturados da cidade está nos bairros de classes média e alta, enquanto, nas regiões de maior exclusão, as poucas áreas verdes existentes estão depredadas. Nessas regiões, favelas ocuparam os espaços livres, gerando um passivo ambiental que precisa ser enfrentado, até mesmo para aumentar a permeabilidade do solo na cidade, iniciativa que é indispensável para enfrentar as enchentes.

Baseado nessas premissas, o PDE estabeleceu objetivos para reestruturar a cidade, que podem ser sistematizados em oito desafios-síntese. São desafios que valem, de uma maneira geral, para a Região Metropolitana como um todo, pois as questões urbanas fundamentais são as mesmas.

Desafio 1: conter o processo de expansão horizontal da metrópole;

Desafio 2: reduzir a necessidade de deslocamento, aproximando o emprego da moradia;

Desafio 3: reestruturar o transporte coletivo e estimular sua utilização, coibindo o uso de automóvel;

Desafio 4: reabilitar e repovoar, com inclusão social, o centro metropolitano expandido e bairros consolidados, revertendo o atual processo de esvaziamento populacional;

Desafio 5: regularizar, urbanizar e qualificar loteamentos irregulares e favelas situados nas áreas periféricas;

Desafio 6: criar novas centralidades e estimular a geração de empregos nas áreas que se caracterizam como cidades-dormitório;

Desafio 7: conter o adensamento construtivo e estimular o adensamento populacional na área consolidada;

Desafio 8: valorizar e qualificar os espaços públicos, ampliar as áreas verdes, a arborização e a permeabilidade do solo.

Como enfrentar esses desafios?

O que precisa ser feito para São Paulo alcançar esses objetivos? Como cresceria a cidade? Qual o modo de vida e a sociabilidade que seus habitantes teriam? Como se moveriam? Como se relacionariam com o meio físico?

Reverter o modelo em curso exige muita determinação do poder público, até mesmo para tomar medidas pouco populares e que, certamente, poderão contrariar interesses econômicos. Isso requer que se amplie o apoio da sociedade organizada, obtido a partir de um amplo pacto gerado por um processo participativo, de modo que os cidadãos mais conscientes se tornem defensores dos principais eixos de transformação que devem ser buscados.

A chave para essa verdadeira revolução urbana é dar melhor aproveitamento e distribuição para os recursos que temos, evitando o desperdício, o consumo exagerado e a opulência. Isso significa evitar a expansão horizontal das cidades; utilizar mais e melhor o solo que já está urbanizado e os imóveis já edificados; reabilitar o parque edificado obsoleto; reurbanizar as áreas subutilizadas ou precariamente construídas; misturar usos e classes sociais para reduzir a necessidade de longos deslocamentos; gerar menos lixo e reciclar o utilizado; economizar e reutilizar a água; racionalizar o uso da energia; equilibrar a relação entre o espaço edificado e o meio ambiente; priorizar o espaço viário para veículos com maior capacidade de transportar as pessoas.

Conter o crescimento horizontal da cidade implica proibir novos parcelamentos a partir de uma linha limítrofe da área já urbanizada, isso envolvendo todos os municípios incluídos na macrometrópole. O objetivo é consolidar um cinturão verde, de baixíssima densidade no entorno da Região Metropolitana de São Paulo, impedindo que ela se conurbe integralmente com as outras aglomerações urbanas, que formam a chamada macrometrópole.

Essa diretriz exige que o Rodoanel não se converta em um mecanismo de estímulo à urbanização dispersa, de caráter claramente especulativo, mas em uma barreira para o crescimento urbano, ladeada por um grande parque em forma de anel. Isso requer que se impeçam acessos secundários, mesmo nas estradas a ele ligadas. Sem essa medida, não só as áreas de proteção dos mananciais situadas no entorno da metrópole poderão se ocupadas, como irá se criar uma área urbanizada contínua de duzentos quilômetros de diâmetro, um verdadeiro desastre ambiental.

Esse cinturão verde precisa ser ocupado com atividades produtivas e rentáveis, de caráter complementar à metrópole, com atividades compatíveis com a preservação ambiental. A criação de mecanismos de pagamento por serviços ambientais precisa ser estudada com seriedade, como mecanismo de compensação pela manutenção de uma vasta área no entorno da metrópole sem ocupação urbana. Mas também devem ser estimuladas outras propostas de ocupação desse cinturão.

Um exemplo é a Comuna da Terra, projeto em desenvolvimento pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Essas comunas são assentamentos organizados em pequenas áreas, implantados no entorno das grandes cidades e formados por trabalhadores da área urbana, antigos migrantes de zonas rurais. Algumas unidades já estão instaladas, como a Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno, no município de Franco da Rocha. Ali se produzem e se beneficiam produtos para ser comercializados na própria Região Metropolitana. Lei federal que exige que 30% das comprar realizadas pelo poder público para a merenda escolar seja proveniente da agricultura familiar pode ser um excelente estímulo para essa atividade, que geralmente sofre pela inexistência de mercado.

Assentamentos como as Comunas da Terra podem ser alternativas sustentáveis para esse cinturão, mantendo-se a atividade rural, agregando-se a população em torno de locais providos de equipamentos coletivos, com uma qualidade de vida e uma sociabilidade bastante diferenciada do que se tinha nas zonas rurais antigas.

Atividades de lazer, com manutenção e/ou recuperação da cobertura vegetal e baixíssima densidade construtiva, é outra opção adequada para esse cinturão, considerando a enorme demanda existente na cidade, sobretudo pela população de baixa renda, que vive nas periferias e, portanto, a uma pequena distância dessa região. A criação de opções de lazer com qualidade junto à cidade é indispensável para São Paulo. Com a melhoria da renda da população, processo inevitável ante o crescimento da economia e melhor distribuição de renda, toda a população desejará um feriado prolongado fora da cidade. A continuar o atual modelo, em vez de gozar de lazer, a população urbana passará dias em estradas congestionadas, o que já ocorre em algumas ocasiões.

A restrição ao crescimento horizontal exige um melhor aproveitamento e um adensamento da área já urbanizada. Isso é perfeitamente possível, pois a densidade de ocupação na RMSP, por incrível que possa parecer, ainda é relativamente baixa. A área urbanizada na região soma 2.200 km2 (sem contar com os condomínios dispersos), onde vivem cerca de vinte milhões de habitantes. Isso significa uma densidade bruta de noventa habitantes por hectare, índice ainda bastante baixo.

Nesse aspecto reside a chave da questão urbana em São Paulo: se a metrópole não deve crescer horizontalmente, onde irão ser implantados os empreendimentos imobiliários necessários para abrigar a demanda habitacional futura e os novos estabelecimentos comerciais, serviços e outros usos não residenciais? Acreditamos ser possível dar melhor aproveitamento aos espaços urbanizados, de modo a propiciar melhor qualidade tanto para os usos já existentes como para as necessidades futuras.

Como foi mostrado, o crescimento populacional tanto do município como da Região Metropolitana vem caindo significativamente e tenderá a baixar gradativamente nas próximas décadas. Isso significa que a demanda por espaço pode ser gradativamente menor. No entanto, a expansão territorial da cidade tem sido determinada, em grande medida, pelo abandono do parque edificado, por novos hábitos de consumo do espaço, seja residencial ou de comércio e serviços e, sobretudo, por um modelo de desenvolvimento urbano equivocado.

Não é por acaso que bairros que se verticalizam, com forte adensamento construtivo, perdem população. O modelo das incorporações imobiliárias, em parte relacionadas com as peculiaridades do Sistema Financeiro da Habitação, é responsável por isso, pois rejeita edificações de uso misto no lote, como existiram no passado, com térreo e sobrelojas com comércio e serviços e residencial nos demais pavimentos. Nos edifícios residenciais existe uma grande quantidade de espaços ociosos, nos térreos, onde poderiam estar atividades que acabam por ocupar, com baixíssima densidade, outros terrenos muito bem localizados.

Ademais, o tamanho médio das famílias vem caindo fortemente; em São Paulo, prevê-se que, em 2020, deva alcançar apenas 2,53 membros. Isso significa que as unidades habitacionais podem ter dimensões mais reduzidas, particularmente nas faixas de rendas média e alta, que ocupam áreas extremamente privilegiadas da cidade; são apartamentos que permanecem vazios a maior parte do dia. Por sua vez, novos condomínios criam verdadeiros clubes privados, utilizando exageradamente o espaço urbano em vez de se optar pela utilização de equipamentos coletivos, privados (clubes) ou públicos. Com melhor aproveitamento das áreas já urbanizadas, a necessidade de expansão seria muito menor.

É evidente que essas opções exigem alterações tanto no modo de vida e expectativas da população como na ação dos agentes imobiliários. São mudanças necessárias se quisermos garantir sustentabilidade para uma metrópole da dimensão de São Paulo.

É claro que a cidade continuará requerendo áreas para novos empreendimentos. A alternativa é crescer para dentro, com a estruturação de regiões subutilizada. Esse processo de reocupação deve ser desenvolvido em um novo tipo de empreendimento, com planejamento e ordenação urbanística. O atual modelo de incorporação imobiliária, geralmente unifuncional, onde cada empreendedor estabelece isoladamente as características de seu projeto, como a volumetria do edifício, dentro de regras genéricas estabelecidas pelo zoneamento, precisa ceder lugar para o planejamento completo de grandes áreas, com desenho urbanístico previamente definido, rompendo com o modelo do condomínio isolado e unifuncional.

A moradia poderia estar harmonicamente associada a usos não residenciais, configurando novos núcleos urbanos, com espaço público aberto para a cidade, onde o trabalho, o consumo e o lazer possam estar próximos à moradia, reduzindo a necessidade de longos deslocamentos urbanos.

São Paulo tem inúmeras regiões onde isso poderia ocorrer, algumas demarcadas no Plano Diretor, como as áreas de operações urbanas ao longo das ferrovias, que formam uma ferradura em torno da área mais consolidada da cidade, e as mais de novecentas Zonas Especiais de Interesse Social, áreas vazias, deterioradas ou ocupadas por favelas e loteamentos irregulares, e muitas podem ser inteiramente reurbanizadas. Não devemos temer por processos de reestruturação completa de algumas áreas da cidade, desde que isso não afete o patrimônio urbano e a memória e, o que é muito importante, não desloque, mas, ao contrário, atraia moradores de baixa e média baixa rendas.

Dentre as áreas que requerem reabilitação, uma das mais importantes é o centro histórico e os bairros que ficam no seu entorno. Trata-se de um desafio que exige ações de peso para reverter o processo combinado de subutilização e de exclusão que ela vem sofrendo. É necessário compatibilizar a reabilitação com a produção de habitação, até mesmo para a população de baixa renda, objetivando aproximar o morar do trabalhar. Para isso, foram criadas as Zonas Especiais de Interesse Social, mas é necessário muito mais: investimentos públicos para ampliar a oferta, ações para baratear os preços de prédios e terrenos para a produção habitacional, combatendo com forte carga tributária a ociosidade e a subutilização de terrenos (incluindo os ocupados por estacionamentos), prédios e galpões industriais vazios.

Os instrumentos previstos no PDE para combater a especulação e dar função social às propriedades precisam ser utilizados em todo o seu potencial. O imposto progressivo sobre imóveis vazios, ociosos ou subutilizados levou quase oito anos para ser regulamentado pela Câmara Municipal, sem que o Executivo tivesse tomado qualquer iniciativa para acelerar sua aprovação. A lei, embora positiva, ainda é insuficiente para alcançar os resultados esperados.

Por sua vez, o mecanismo que a municipalidade está utilizando para promover a reabilitação da regiões de Santa Ifigênia (chamada também de “Cracolândia” ou “Nova Luz”), a concessão urbanística, foi adotado sem amplo debate público e sem um projeto urbanístico definido. Por essas razões, tem tido efeito contrário aos seus objetivos, aprofundando a deterioração da região e gerando forte oposição de moradores e comerciantes. Em vez de se desenvolver um plano com participação da sociedade, mobilizando a iniciativa privada do modo articulado com iniciativas públicas e de organizações locais, busca-se transformar a recuperação urbana de um bairro como um negócio imobiliário. É exatamente o que não se deveria fazer.

Nessas regiões mais antigas, marcadas pela memória e indispensáveis para o fortalecimento da identidade da cidade, devem-se desenvolver ações mais contundentes para reabilitar e reciclar edifícios verticais construídos entre os anos 1930 e 1970, que logo terão entre cinquenta e cem anos de vida. São Paulo já foi demolida duas vezes: nos final do século XIX, quando foi derrubada a cidade de taipa, erguida pelos portugueses e tupis; e em meados do século XX, quando foi a vez da cidade de tijolos, edificada pelos imigrantes italianos, portugueses e espanhóis. Construiu-se uma selva de concreto vertical que, gradativamente, vai virando obsoleta. Essa não será posta abaixo sem um alto custo ambiental e urbano, que precisa ser evitado. A demolição dos edifícios São Vito e Mercúrio, promovida pela prefeitura e que gerou grande quantidade de entulhos, para suprimir moradias no centro onde elas são fundamentais para um novo modelo de desenvolvimento urbano, mostra um equívoco que não pode se repetir.

Essa opção para enfrentar os edifícios obsoletos deve ser evitada a qualquer custo. Por meio do desenvolvimento de novas tecnologias de reabilitação e reciclagem de edifícios, a cidade poderá se renovar sem demolir, gerando novos espaços habitáveis, na perspectiva de crescer para dentro, equilibrando melhor os usos urbanos complementares, com maior possibilidade de deslocamento a pé.

Outra ação estrutural para equilibrar a relação entre habitação e emprego é a criação de novas centralidades e postos de trabalho nas áreas periféricas da Região Metropolitana. Sem uma intervenção forte do poder público, mediante planos de desenvolvimento econômicos nas diferentes regiões – estimulando a instalação de novas atividades e geração de mais empregos onde hoje predomina uma verdadeira cidade-dormitório -, isso não tem condições de ocorrer. Foi o que começou a ser implementado entre 2003 e 2004, com o Plano de Desenvolvimento Econômico da Zona Leste, previsto no PDE, que objetivou criar uma nova centralidade em uma região onde uma população de mais de seis milhões de moradores não tem opções de emprego. Mas, em 2005, a proposta foi paralisada pela prefeitura.

O desenvolvimento urbano das áreas periféricas, para que elas possam atrair atividades econômicas, exige qualificação urbanística e regularização fundiária, articuladas com programas de inclusão social e de economia solidária, capaz de estimular o empreendedorismo na população local. A transformação desses assentamentos periféricos precários em bairros de verdade, com infraestrutura, áreas verdes, equipamentos, documentação de posse e organização social teria enorme repercussão na redução da violência e mudaria a cara dos bairros-dormitório que caracterizam a região, marcada por uma paisagem indefinida e acinzentada.

Com usos mais bem distribuídos, é possível reduzir a extrema necessidade de mobilidade que hoje é a regra na cidade. Mais moradia onde existem empregos, melhor distribuição das atividades econômicas, beneficiando áreas carentes de oportunidade de trabalho, e, ainda, empreendimentos imobiliários com misturas de uso contribuem para deslocamentos por distâncias menores. Mas em uma metrópole a questão de mobilidade será sempre um requisito importante.

O PDE incluiu uma proposta de reorganização do sistema de transportes na cidade que apenas começou a ser implantado. Baseado em um subsistema estrutural, composto por metrô, trens metropolitanos e corredores de ônibus em faixas exclusivas, e um subsistema de alimentação capilar, com veículos de menor capacidade chegando próximo às áreas de moradia, articulados pelo bilhete único, buscou-se criar uma condição de deslocamento por transporte coletivo capaz de competir com os automóveis.

No entanto, essa proposta, que prometia tornar o deslocamento por transporte coletivo tão confortável e rápido como o uso dos automóveis, ficou pela metade. Desde 2005, nenhum novo corredor de ônibus foi implantado na cidade. O sistema de alimentação nunca foi efetivamente implantado; sua ausência dificulta um acesso rápido às estações de metrô e trem. Assim, a utilização de veículos individuais, apesar dos brutais congestionamentos, continua apresentando enormes vantagens competitivas em relação ao uso de transporte coletivo. Os investimentos em metrô e trens urbanos são indispensáveis para um enfrentamento estrutural do problema, mas são excessivamente elevados e geram resultados apenas no longo prazo.

Em contrapartida, têm tido continuidade os maciços investimentos no sistema viário, sem que haja faixas para o transporte coletivo, como ocorreu recentemente no alargamento da Marginal do Tietê, obra de 1,3 bilhão de reais, destinada exclusivamente aos automóveis e que agravou os problemas de transbordamento do rio. Esse tipo de obra funciona como um atrativo para reforçar um paradigma que deveria ser alterado. Para que o transporte coletivo se generalize, é necessário que ele possa competir em igualdade de condições com o deslocamento por automóvel. Alcançar essa condição é um desafio fundamental para que um novo modelo urbano possa ser implantado em São Paulo.

Uma outra cidade é possível?

Embora a cidade e o país tenham mudado muito nesses oito anos, as linhas gerais do PDE continuam válidas, no entanto precisam ser mais bem conhecidas e debatidas. Novos objetivos precisam ser incluídos, sobretudo no que se refere às questões ambientais e relacionadas com mudanças climáticas; outros precisam ser radicalizados. O crescimento econômico e o maior acesso da população aos bens de consumo (como automóveis), assim como a excepcional elevação do crédito habitacional, processos que em tese são positivos, estão agravando o quadro urbano em São Paulo, pois ele incide sobre uma cidade que continua crescendo com base em um modelo inadequado.

Em 2002, quando o PDE foi aprovado, a capacidade de investimento do poder público era muito baixa; de lá para cá, o orçamento do município mais do que dobrou. A prefeitura e o Estado recuperaram a capacidade de investir na cidade e têm condições de reverter esse modelo. Essa oportunidade não pode ser perdida; a sociedade precisa se engajar no debate da questão urbana e se mobilizar para influenciar nas decisões do poder público. Afinal, a cidade existe para seus cidadãos.

Recebido em 7.3.2011 e aceito em 15.3.2011.

Nabil Bonduki é professor da Universidade de São Paulo desde 1986. Foi professor de História do Urbanismo na EESC-USP e leciona planejamento urbano na FAU-USP. Foi vereador no município de São Paulo e relator do Plano Diretor Estratégico. @ –nbonduki@hotmail.com

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O modelo de desenvolvimento urbano de São Paulo precisa ser revertido https://institucional.nabilbonduki.com.br/2020/10/17/o-modelo-de-desenvolvimento-urbano-de-sao-paulo-precisa-ser-revertido-3/ Sat, 17 Oct 2020 17:39:37 +0000 https://nabilbonduki.com.br/?p=86 Estudos Avançados versão impressa ISSN 0103-4014 Estud. av. vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011 https://doi.org/10.1590/S0103-40142011000100003  RESUMOEste artigo objetiva apontar as principais alterações que são necessárias no modelo de desenvolvimento de São Paulo, com base nos objetivos definidos no Plano Diretor Estratégico, em vigor desde 2003. A continuidade do modelo que há décadas orienta as políticas urbanas na cidade Leia mais…

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Estudos Avançados
versão impressa ISSN 0103-4014
Estud. av. vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011
https://doi.org/10.1590/S0103-40142011000100003 

RESUMOEste artigo objetiva apontar as principais alterações que são necessárias no modelo de desenvolvimento de São Paulo, com base nos objetivos definidos no Plano Diretor Estratégico, em vigor desde 2003. A continuidade do modelo que há décadas orienta as políticas urbanas na cidade – baseado na expansão ilimitada da mancha urbana, na prioridade para o automóvel, na excessiva impermeabilização do solo, no esvaziamento demográfico nas áreas consolidadas, nos processos imobiliários tradicionais e na formação de periferias carentes de infraestrutura, serviços e empregos – levará a cidade para uma condição de insustentabilidade, agravando as condições caóticas já presentes. O texto mostra que existem opções consistentes, mas que sua aplicação exige aprofundar o planejamento participativo, mobilizando a sociedade, pois a mudança de um modelo fortemente arraigado contraria interesses consolidados.

Palavras-chave: Planejamento, Plano Diretor, São Paulo, Uso do solo, Desenvolvimento urbano.


ABSTRACTThis article aims to point out some of the main changes needed in São Paulo’s development model, according to the goals defined in the city’s Strategic Master Plan, in force since 2003. The continuance of the model that has guided urban policies in the city for decades – based on the unlimited expansion of the urban footprint, on the primacy of the automobile, on increasing soil imperviousness, on the depopulation of consolidated regions, on ingrained but outmoded processes of real estate development, and on the creation of outlying peripheries lacking infrastructure, services and jobs – will lead the city to an unsustainable situation, aggravating its already existing chaotic conditions. The text shows that consistent alternatives do exist, but that their implementation would require increased participatory planning and societal mobilization, because changing a deeply ingrained model runs counter to well-entrenched vested interests.

Keywords: Planning, Master Plan, São Paulo, Land use, Urban development.


Apresentação

O urbanismo sempre caminhou na corda bamba, entre ser prática profissional, disciplina científica ou utopia. Desde as cidades ideais do Renascimento, passando pelo socialismo utópico de Owen e Fourrier do início

do século XIX – que nada mais era senão planos de cidades imaginárias – e chegando ao urbanismo moderno, das vanguardas à Carta de Atenas, sonhar com ambientes habitáveis livres da desigualdade, com equilíbrio entre o ambiente construído e a natureza, onde pudesse reinar a paz, a solidariedade, a igualdade, a cidadania e a tranquilidade sempre foi o motor que impulsionou o debate de ideias novas para impulsionar o desenvolvimento urbano.

No final do século XX, porém, parecia que as energias utópicas tinham desaparecido do imaginário da sociedade e da cidade do futuro. O urbanismo estava se tornando marketing urbano, uma prática a serviço do mercado. A derrocada do falso socialismo soviético, o desencanto com ideologias transformadoras que empolgaram várias gerações desde o Iluminismo e a Revolução Francesa, a predominância do materialismo consumista, o vigor do mercado, regido pelas ideias neoliberais, e a falsa crença de que a ciência poderia prever e determinar tudo o que irá acontecer estavam levando nosso tempo, inexoravelmente, a esse apagão de energias utópicas, que foi chamado de “fim da história”.

Passou a vigorar uma descrença de que seria possível reverter, com ações coletivas, processos em curso, levando o cidadão a buscar em soluções individuais as respostas para as questões que o preocupam, situação que é particularmente forte no Brasil. O risco de violência é enfrentado com segregação e confinamento; a precariedade do transporte coletivo com o automóvel individual; a depredação ambiental com a criação de uns microcosmos de verde junto ao condomínio; a poluição do ar, com fins de semana na serra ou à beira mar; a água maltratada com garrafas pet de mineral. Soluções insuficientes a que apenas os estratos altos e médios podiam ter acesso. Para o restante da população, restava a barbárie. A criação de guetos protegidos dos males da metrópole (condomínios fechados, carros blindados, shoppings policiados, ambientes vigiados) parecia ser a única saída para superar um ambiente urbano pouco acolhedor e agressivo.

Esse clima modificou-se na primeira década do século XXI. O 11 de Setembro de 2001 representou, simbolicamente, a ruína da falsa noção de segurança que os guetos estritamente vigiados pareciam garantir. A onda de assaltos a condomínios e shopping centers, que se tornou rotina em São Paulo, mostra que a lógica da segregação não garante segurança. A crise mundial do capitalismo de 2008/2009 expôs o que já sabíamos, ou seja, que o mercado não pode correr solto, sem uma forte presença reguladora do Estado, o que desmontou os que, no Brasil, ainda defendiam uma maior desregulamentação dos processos urbanos. Os desastres climáticos, por sua vez, vêm mostrando que o “desenvolvimento a qualquer custo”, a orgia consumista e o modo de vida vigente no país, com os padrões impostos pelo mercado e assumidos pela classe média são insustentáveis no futuro próximo.

Novas esperanças, contudo, ressurgiram. A criação de novas redes globais focadas na transformação, como o Fórum Social Mundial, com sua máxima “Um novo mundo é possível”, e a articulação de pessoas por meio da internet mostram que a sociedade global dá sinais de vitalidade e de inconformismo. Superando formas clássicas de organização, novas redes mobilizam a sociedade, articulando cidadãos antes isolados, e lançam outros jeitos de construir desejos coletivos. De diferentes maneiras, recupera-se o vigor utópico, elemento indispensável para o renascimento do urbanismo.

Isso porque, sem utopia, não há urbanismo. Ele se reduziria a uma mera prática tecnocrática e burocratizada, enfrentando mais os efeitos do que as causas dos problemas urbanos, e perderia seu impulso transformador. É normal ouvir as pessoas comuns e até mesmo alguns especialistas afirmarem que as grandes metrópoles, sobretudo nos países pobres, não têm jeito. Em São Paulo, isso é muito comum, particularmente nos dias em que enchentes ou congestionamentos-monstro paralisam a cidade e apavoram os cidadãos. Não por outra razão, mais da metade da população, porcentagem que chegou a 65% em 1999, afirma que deixaria a cidade se pudesse.

Superar essa visão pessimista é essencial para que a sociedade possa se engajar na construção de alternativas. Para isso, é necessário recuperar as energias utópicas, uma dimensão passional capaz de convencer os cidadãos de que eles podem mudar processos que parecem imutáveis. Somente quando a população da cidade acreditar que é possível uma substancial alteração do quadro atual, de modo a tornar São Paulo viável do ponto de vista da qualidade de vida do conjunto de seus moradores e do equilíbrio ambiental e urbano, será possível construir esse caminho, que pode parecer utópico, mas que está ao nosso alcance, desde que se criem consensos sobre alguns aspectos fundamentais da vida da cidade e que se articule o poder público, autônomo dos interesses particulares, para coordenar esse processo transformador. Se fosse simples e fácil, não seria uma utopia.

Neste artigo, busca-se abrir um debate sobre alternativas para o desenvolvimento urbano de São Paulo. Ele somente pode ser construído mediante um processo de planejamento participativo, onde o poder público tem um papel fundamental, mas que exige o engajamento da sociedade. Não é fácil enfrentar um modelo urbanístico e um modo de vida que sustentam interesses econômicos sólidos; apenas se a sociedade tomar consciência de que eles são insustentáveis, ele poderá ser revertido.

A metrópole que temos

É evidente que São Paulo, assim como as outras metrópoles brasileiras, não pode continuar crescendo a partir do modelo urbano que hoje vigora. A cidade, no início do século XXI, caminha para o caos, e somente com a alteração desse modelo poder-se-á ter esperança de um futuro melhor.

A desigualdade urbana, funcional e social se aprofunda, gerando uma cidade partida e segregada. A mancha urbana se expande horizontalmente destruindo as áreas de proteção ambiental e gerando, por um lado, assentamentos precários distantes e carentes de infraestrutura, e, por outro, condomínios fechados de média e alta rendas, acessíveis apenas por meio de automóvel. A migração diminuiu e a população cresceu pouco a partir de 1990 (cerca de 0,7% ao ano no município de São Paulo, e 1,65% na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) nos últimos vinte anos), mas de uma forma muito desigual: as áreas mais bem urbanizadas perderam população, enquanto as regiões mais distantes, as áreas de interesse ambiental e os municípios mais pobres da Região Metropolitana continuam com crescimento elevado.

A expansão física é ainda mais grave. O espraiamento horizontal da RMSP tende a criar uma megametrópole quase inteiramente ocupada, reduzindo os espaços verdes ainda não urbanizados entre a região de Campinas, a Baixada Santista, a conurbação de São José dos Campos e a de Sorocaba. O modelo de condomínios fechados de baixa densidade se expande exatamente nessa região, tendendo a eliminar um cinturão verde que ainda existe no entorno da massa urbanizada. O processo colaborará para o aquecimento global, para alterar o comportamento hídrico, com sérias consequências no abastecimento de água e no agravamento das enchentes, além de aprofundar o modo de vida baseado no automóvel individual, única forma de acessar esses assentamentos. Esse modelo de urbanismo é incompatível com o transporte coletivo.

Os 53 distritos do município de São Paulo mais bem urbanizados e dotados de equipamentos e empregos perderam moradores, incluindo os bairros fortemente verticalizados. Áreas dotadas de infraestrutura e oportunidades, que vivem com o trânsito congestionado, se esvaziam de moradores; equipamentos já instalados, como escolas e postos de saúde, passam a apresentar ociosidade, enquanto o poder público é forçado a construir equipamentos nos bairros distantes que se adensam. Escolas fechadas nas áreas mais consolidadas e “escolas de lata” nas periféricas distantes são a imagem desse fenômeno.

A desigualdade territorial tem graves consequências para a mobilidade urbana. No distrito da República, existem mais de seiscentos empregos para cada cem moradores, índice que na Cidade Tiradentes, no extremo da Zona Leste, cai para oito. O deslocamento pendular dos bairros-dormitório para o centro expandido gera a superlotação do sistema viário e de transporte coletivo. Nessas viagens, há quem enfrente terríveis seis horas diárias em coletivos, perdendo, literalmente, um terço de sua vida útil no deslocamento.

A prioridade para o automóvel, que marcou a visão de progresso do século XX, marcada pela implantação de vias expressas e complexos viários, agrava esse problema, pois o sistema viário não comporta os quase sete milhões de veículos cadastrados na RMSP. O trânsito virou o pesadelo dos paulistanos, apesar de a prioridade nos investimentos públicos ter se dirigido para a ampliação do viário em detrimento do transporte coletivo. Não por acaso, o único plano integralmente implantado em São Paulo foi o tristemente famoso Plano de Avenidas, uma proposta de abertura de avenidas radiais e anéis perimetrais que orientou, dos anos 1930 ao final dos anos 1960, as insuficientes obras públicas na cidade.

Edifícios obsoletos, vazios ou subutilizados povoam o centro antigo, abandonado pela elite, onde mais de 18% dos domicílios estavam vagos em 2000. Numa outra paisagem, uma grande quantidade de galpões permanece sem utilização ao longo das orlas ferroviárias, área com grande potencial de transporte coletivo de massa, onde empreendimentos imobiliários começam a ser implantados desvinculados de uma estratégia urbana.

Enchentes são agravadas pela impermeabilização do solo, gerada tanto pela prática oficial, que vigora desde os anos 1930, de implantar avenidas e vias expressas nos fundos de vale, como pela ocupação irregular do solo. A tolerância ou incapacidade de coibir usos e ocupações irregulares marca um desrespeito às normas urbanísticas e ambientais.

Por falta de política e planejamento habitacional, mais de dois milhões de pessoas habitam irregularmente as regiões de proteção ambiental. Recente levantamento realizado pelo IPT mostrou que existem cerca de 110 mil moradias em áreas de risco, a maioria ocupando faixas de saneamento de córregos e encostas íngremes, ou seja, Áreas de Proteção Permanentes, segundo a definição do Código Florestal. Nas três últimas décadas, a população moradora em favelas cresceu em índices muitos superiores aos da população em geral.

Degradação do meio ambiente, desertificação do espaço público e desprezo pela memória urbana e social marcam uma cidade com identidade ameaçada. Calçadas estreitas, obstruídas ou não implantadas, poluição do espaço aéreo, córregos transformados em esgotos e a agressividade dos motoristas tornam ainda mais difícil a vida na cidade. Para garantir acesso às suas garagens, moradores criam degraus nas calçadas e as obstruem com portões que avançam para além do lote privado. Resultado de processos imobiliários formais ou informais ou da falta de civilidade dos moradores, o desrespeito ao espaço público é a regra na cidade.

Será que essa situação pode ser revertida e a metrópole dar a volta por cima, se tornando viável, ambientalmente sustentável, com um novo modelo urbano e um modo de vida mais simples e equilibrado?

Construindo um caminho alternativo: é possível surgir uma nova São Paulo no século XXI?

A utopia de uma cidade mais justa e sustentável, capaz de garantir qualidade de vida para os seus cidadãos e de se desenvolver de modo equilibrado com o meio ambiente pode parecer distante para muitos. “Esta cidade não tem mais jeito” é uma frase que se ouve com frequência em referência ao nosso futuro. A utopia de uma cidade melhor desapareceu do imaginário da população, que preferiria se mudar se isso fosse possível.

Isso, porém, não é fácil: São Paulo oferece um tão amplo leque de oportunidades de trabalho, negócios, lazer e sociabilidade que atraem uma vasta população, incapaz de se desvincular da cidade. Muitos se mudaram para fora da cidade, como para um condomínio fechado situado num raio de cem quilômetros da capital, situação frequente na população de renda mais alta, mas permanecem ligados profissionalmente a ela e passam a viver um cotidiano selvagem de deslocamento casa-trabalho, modelo de vida que exige horas na estrada e no trânsito e vários automóveis em cada domicílio. As entradas da cidade pelas principais rodovias apresentam, nas primeiras horas da manhã, congestionamentos parecidos com as avenidas mais movimentadas.

Os que optam por essa alternativa perdem a riqueza e a diversidade do cotidiano urbano, “onde se respira o ar de liberdade”, como se dizia na Idade Média, e têm que se contentar com a monocórdia e pacata vida entre iguais num território permanentemente vigiado.

A questão básica que precisa ser enfrentada é como reverter o atual modelo de crescimento da megametrópole, baseado na expansão horizontal periférica (de baixa renda) ou dispersa (de média ou alta renda); na verticalização de baixa densidade populacional na área consolidada; no uso intensivo do automóvel; no afastamento entre o emprego e a moradia; na produção exagerada de lixo; na deterioração das zonas mais antigas e de interesse histórico e na ocupação e destruição das áreas de proteção ambiental. Encontrar um caminho que interrompa esse processo e que, gradativamente, possa ser substituído por um novo modelo de desenvolvimento urbano que maximize as potencialidades de macrometrópole e, ao mesmo tempo, minimize os gravíssimos impactos socioambientais que hoje tendem a inviabilizar nosso futuro é o grande desafio.

O Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (PDE), aprovado em 2002, apontou um caminho possível, embora tenha limitações, pois foi resultado de uma ampla negociação com diferentes setores sociais, cujos interesses nem sempre permitem alterações significativas no modelo urbano predominante. Mas ele é um dos mais avançados planos diretores implantados no Brasil no recente ciclo de planejamento marcado pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Cidade (2001), regidos pelos princípios da função social da propriedade, direito a habitação, planejamento participativo e recuperação social da valorização imobiliária gerada pelos investimentos públicos. Os novos instrumentos urbanísticos criados por esse dispositivo legal, entretanto, só podem ser aplicados se previstos nos planos diretores e regulamentados por leis municipais específicas, aprovadas pelas câmaras de vereadores, o que dificulta sua implementação.

Prevendo a utilização desses instrumentos, o PDE apresentou os eixos fundamentais para uma reversão desse modelo de desenvolvimento urbano que predomina na cidade. No entanto, sua implementação tem sido truncada. Embora alguns dos instrumentos previstos e das ações estratégicas por ele previstas tenham começado a ser implantada em 2003, foram interrompida a partir de 2005, com a mudança da administração e, quando foram retomadas parcialmente, não estavam articuladas com uma estratégia global para a cidade.

Apesar disso, hoje existe certo consenso entre os vários setores da sociedade, pelo menos no discurso, em relação à maioria dos principais objetivos do PDE, que são estratégicos e de longo prazo. Para alcançá-los, entretanto, é necessário colocar em prática, no curto prazo, instrumentos, programas e ações estratégicas indispensáveis para gerar os resultados esperados, o que tem sido postergado.

Os desafios para mudar o modelo urbano de São Paulo

Reduzir as desigualdades urbanas é um desafio-síntese para tornar a cidade melhor. O modelo de uma cidade segregada, que tenha guetos que se assemelham à Suíça e enormes territórios com imensas carências e precariedade, deve ser combatido com vigor, implicando priorizar investimentos nas áreas mais carentes e usar os instrumentos tributários e urbanísticos para redistribuir riqueza. A adoção de alíquotas progressivas de acordo com o valor do imóvel, adotada nas regras do IPTU a partir de 2002, é um mecanismo nesse sentido, cobrando mais dos imóveis mais valorizados e isentando os de baixo valor.

A criação da outorga onerosa do direito de construir, ou seja, o solo criado mediante o uso mais intenso da terra, regulamentada pelo PDE, é outro instrumento para estimular a descentralização dos investimentos imobiliários privados. Isso se obtém cobrando pelo solo criado proporcionalmente mais das incorporações localizadas nos bairros consolidados, mais valorizados e procurados pelo mercado, privilegiando as regiões intermediárias e periféricas.

Reduzir as desigualdades também significa aproximar a habitação, incluindo a social, dos empregos e equipamentos, mediante duas ações estratégicas combinadas: levar a urbanização, a regularização fundiária, empregos e serviços para as áreas periféricas, que devem ser estruturadas e qualificadas do ponto de vista urbanístico, e estimular o uso residenciais, com incentivos e subsídios para as rendas mais baixas nas áreas que concentram os empregos – centro expandido e zona sudoeste. Dessa forma, podem-se reduzir a necessidade e o tempo de deslocamento, reduzindo a necessidade de uso do automóvel e meio de transporte motorizado.

Uma qualificação menos desigual dos espaços públicos é fundamental. A grande maioria dos parques bem estruturados da cidade está nos bairros de classes média e alta, enquanto, nas regiões de maior exclusão, as poucas áreas verdes existentes estão depredadas. Nessas regiões, favelas ocuparam os espaços livres, gerando um passivo ambiental que precisa ser enfrentado, até mesmo para aumentar a permeabilidade do solo na cidade, iniciativa que é indispensável para enfrentar as enchentes.

Baseado nessas premissas, o PDE estabeleceu objetivos para reestruturar a cidade, que podem ser sistematizados em oito desafios-síntese. São desafios que valem, de uma maneira geral, para a Região Metropolitana como um todo, pois as questões urbanas fundamentais são as mesmas.

Desafio 1: conter o processo de expansão horizontal da metrópole;

Desafio 2: reduzir a necessidade de deslocamento, aproximando o emprego da moradia;

Desafio 3: reestruturar o transporte coletivo e estimular sua utilização, coibindo o uso de automóvel;

Desafio 4: reabilitar e repovoar, com inclusão social, o centro metropolitano expandido e bairros consolidados, revertendo o atual processo de esvaziamento populacional;

Desafio 5: regularizar, urbanizar e qualificar loteamentos irregulares e favelas situados nas áreas periféricas;

Desafio 6: criar novas centralidades e estimular a geração de empregos nas áreas que se caracterizam como cidades-dormitório;

Desafio 7: conter o adensamento construtivo e estimular o adensamento populacional na área consolidada;

Desafio 8: valorizar e qualificar os espaços públicos, ampliar as áreas verdes, a arborização e a permeabilidade do solo.

Como enfrentar esses desafios?

O que precisa ser feito para São Paulo alcançar esses objetivos? Como cresceria a cidade? Qual o modo de vida e a sociabilidade que seus habitantes teriam? Como se moveriam? Como se relacionariam com o meio físico?

Reverter o modelo em curso exige muita determinação do poder público, até mesmo para tomar medidas pouco populares e que, certamente, poderão contrariar interesses econômicos. Isso requer que se amplie o apoio da sociedade organizada, obtido a partir de um amplo pacto gerado por um processo participativo, de modo que os cidadãos mais conscientes se tornem defensores dos principais eixos de transformação que devem ser buscados.

A chave para essa verdadeira revolução urbana é dar melhor aproveitamento e distribuição para os recursos que temos, evitando o desperdício, o consumo exagerado e a opulência. Isso significa evitar a expansão horizontal das cidades; utilizar mais e melhor o solo que já está urbanizado e os imóveis já edificados; reabilitar o parque edificado obsoleto; reurbanizar as áreas subutilizadas ou precariamente construídas; misturar usos e classes sociais para reduzir a necessidade de longos deslocamentos; gerar menos lixo e reciclar o utilizado; economizar e reutilizar a água; racionalizar o uso da energia; equilibrar a relação entre o espaço edificado e o meio ambiente; priorizar o espaço viário para veículos com maior capacidade de transportar as pessoas.

Conter o crescimento horizontal da cidade implica proibir novos parcelamentos a partir de uma linha limítrofe da área já urbanizada, isso envolvendo todos os municípios incluídos na macrometrópole. O objetivo é consolidar um cinturão verde, de baixíssima densidade no entorno da Região Metropolitana de São Paulo, impedindo que ela se conurbe integralmente com as outras aglomerações urbanas, que formam a chamada macrometrópole.

Essa diretriz exige que o Rodoanel não se converta em um mecanismo de estímulo à urbanização dispersa, de caráter claramente especulativo, mas em uma barreira para o crescimento urbano, ladeada por um grande parque em forma de anel. Isso requer que se impeçam acessos secundários, mesmo nas estradas a ele ligadas. Sem essa medida, não só as áreas de proteção dos mananciais situadas no entorno da metrópole poderão se ocupadas, como irá se criar uma área urbanizada contínua de duzentos quilômetros de diâmetro, um verdadeiro desastre ambiental.

Esse cinturão verde precisa ser ocupado com atividades produtivas e rentáveis, de caráter complementar à metrópole, com atividades compatíveis com a preservação ambiental. A criação de mecanismos de pagamento por serviços ambientais precisa ser estudada com seriedade, como mecanismo de compensação pela manutenção de uma vasta área no entorno da metrópole sem ocupação urbana. Mas também devem ser estimuladas outras propostas de ocupação desse cinturão.

Um exemplo é a Comuna da Terra, projeto em desenvolvimento pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Essas comunas são assentamentos organizados em pequenas áreas, implantados no entorno das grandes cidades e formados por trabalhadores da área urbana, antigos migrantes de zonas rurais. Algumas unidades já estão instaladas, como a Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno, no município de Franco da Rocha. Ali se produzem e se beneficiam produtos para ser comercializados na própria Região Metropolitana. Lei federal que exige que 30% das comprar realizadas pelo poder público para a merenda escolar seja proveniente da agricultura familiar pode ser um excelente estímulo para essa atividade, que geralmente sofre pela inexistência de mercado.

Assentamentos como as Comunas da Terra podem ser alternativas sustentáveis para esse cinturão, mantendo-se a atividade rural, agregando-se a população em torno de locais providos de equipamentos coletivos, com uma qualidade de vida e uma sociabilidade bastante diferenciada do que se tinha nas zonas rurais antigas.

Atividades de lazer, com manutenção e/ou recuperação da cobertura vegetal e baixíssima densidade construtiva, é outra opção adequada para esse cinturão, considerando a enorme demanda existente na cidade, sobretudo pela população de baixa renda, que vive nas periferias e, portanto, a uma pequena distância dessa região. A criação de opções de lazer com qualidade junto à cidade é indispensável para São Paulo. Com a melhoria da renda da população, processo inevitável ante o crescimento da economia e melhor distribuição de renda, toda a população desejará um feriado prolongado fora da cidade. A continuar o atual modelo, em vez de gozar de lazer, a população urbana passará dias em estradas congestionadas, o que já ocorre em algumas ocasiões.

A restrição ao crescimento horizontal exige um melhor aproveitamento e um adensamento da área já urbanizada. Isso é perfeitamente possível, pois a densidade de ocupação na RMSP, por incrível que possa parecer, ainda é relativamente baixa. A área urbanizada na região soma 2.200 km2 (sem contar com os condomínios dispersos), onde vivem cerca de vinte milhões de habitantes. Isso significa uma densidade bruta de noventa habitantes por hectare, índice ainda bastante baixo.

Nesse aspecto reside a chave da questão urbana em São Paulo: se a metrópole não deve crescer horizontalmente, onde irão ser implantados os empreendimentos imobiliários necessários para abrigar a demanda habitacional futura e os novos estabelecimentos comerciais, serviços e outros usos não residenciais? Acreditamos ser possível dar melhor aproveitamento aos espaços urbanizados, de modo a propiciar melhor qualidade tanto para os usos já existentes como para as necessidades futuras.

Como foi mostrado, o crescimento populacional tanto do município como da Região Metropolitana vem caindo significativamente e tenderá a baixar gradativamente nas próximas décadas. Isso significa que a demanda por espaço pode ser gradativamente menor. No entanto, a expansão territorial da cidade tem sido determinada, em grande medida, pelo abandono do parque edificado, por novos hábitos de consumo do espaço, seja residencial ou de comércio e serviços e, sobretudo, por um modelo de desenvolvimento urbano equivocado.

Não é por acaso que bairros que se verticalizam, com forte adensamento construtivo, perdem população. O modelo das incorporações imobiliárias, em parte relacionadas com as peculiaridades do Sistema Financeiro da Habitação, é responsável por isso, pois rejeita edificações de uso misto no lote, como existiram no passado, com térreo e sobrelojas com comércio e serviços e residencial nos demais pavimentos. Nos edifícios residenciais existe uma grande quantidade de espaços ociosos, nos térreos, onde poderiam estar atividades que acabam por ocupar, com baixíssima densidade, outros terrenos muito bem localizados.

Ademais, o tamanho médio das famílias vem caindo fortemente; em São Paulo, prevê-se que, em 2020, deva alcançar apenas 2,53 membros. Isso significa que as unidades habitacionais podem ter dimensões mais reduzidas, particularmente nas faixas de rendas média e alta, que ocupam áreas extremamente privilegiadas da cidade; são apartamentos que permanecem vazios a maior parte do dia. Por sua vez, novos condomínios criam verdadeiros clubes privados, utilizando exageradamente o espaço urbano em vez de se optar pela utilização de equipamentos coletivos, privados (clubes) ou públicos. Com melhor aproveitamento das áreas já urbanizadas, a necessidade de expansão seria muito menor.

É evidente que essas opções exigem alterações tanto no modo de vida e expectativas da população como na ação dos agentes imobiliários. São mudanças necessárias se quisermos garantir sustentabilidade para uma metrópole da dimensão de São Paulo.

É claro que a cidade continuará requerendo áreas para novos empreendimentos. A alternativa é crescer para dentro, com a estruturação de regiões subutilizada. Esse processo de reocupação deve ser desenvolvido em um novo tipo de empreendimento, com planejamento e ordenação urbanística. O atual modelo de incorporação imobiliária, geralmente unifuncional, onde cada empreendedor estabelece isoladamente as características de seu projeto, como a volumetria do edifício, dentro de regras genéricas estabelecidas pelo zoneamento, precisa ceder lugar para o planejamento completo de grandes áreas, com desenho urbanístico previamente definido, rompendo com o modelo do condomínio isolado e unifuncional.

A moradia poderia estar harmonicamente associada a usos não residenciais, configurando novos núcleos urbanos, com espaço público aberto para a cidade, onde o trabalho, o consumo e o lazer possam estar próximos à moradia, reduzindo a necessidade de longos deslocamentos urbanos.

São Paulo tem inúmeras regiões onde isso poderia ocorrer, algumas demarcadas no Plano Diretor, como as áreas de operações urbanas ao longo das ferrovias, que formam uma ferradura em torno da área mais consolidada da cidade, e as mais de novecentas Zonas Especiais de Interesse Social, áreas vazias, deterioradas ou ocupadas por favelas e loteamentos irregulares, e muitas podem ser inteiramente reurbanizadas. Não devemos temer por processos de reestruturação completa de algumas áreas da cidade, desde que isso não afete o patrimônio urbano e a memória e, o que é muito importante, não desloque, mas, ao contrário, atraia moradores de baixa e média baixa rendas.

Dentre as áreas que requerem reabilitação, uma das mais importantes é o centro histórico e os bairros que ficam no seu entorno. Trata-se de um desafio que exige ações de peso para reverter o processo combinado de subutilização e de exclusão que ela vem sofrendo. É necessário compatibilizar a reabilitação com a produção de habitação, até mesmo para a população de baixa renda, objetivando aproximar o morar do trabalhar. Para isso, foram criadas as Zonas Especiais de Interesse Social, mas é necessário muito mais: investimentos públicos para ampliar a oferta, ações para baratear os preços de prédios e terrenos para a produção habitacional, combatendo com forte carga tributária a ociosidade e a subutilização de terrenos (incluindo os ocupados por estacionamentos), prédios e galpões industriais vazios.

Os instrumentos previstos no PDE para combater a especulação e dar função social às propriedades precisam ser utilizados em todo o seu potencial. O imposto progressivo sobre imóveis vazios, ociosos ou subutilizados levou quase oito anos para ser regulamentado pela Câmara Municipal, sem que o Executivo tivesse tomado qualquer iniciativa para acelerar sua aprovação. A lei, embora positiva, ainda é insuficiente para alcançar os resultados esperados.

Por sua vez, o mecanismo que a municipalidade está utilizando para promover a reabilitação da regiões de Santa Ifigênia (chamada também de “Cracolândia” ou “Nova Luz”), a concessão urbanística, foi adotado sem amplo debate público e sem um projeto urbanístico definido. Por essas razões, tem tido efeito contrário aos seus objetivos, aprofundando a deterioração da região e gerando forte oposição de moradores e comerciantes. Em vez de se desenvolver um plano com participação da sociedade, mobilizando a iniciativa privada do modo articulado com iniciativas públicas e de organizações locais, busca-se transformar a recuperação urbana de um bairro como um negócio imobiliário. É exatamente o que não se deveria fazer.

Nessas regiões mais antigas, marcadas pela memória e indispensáveis para o fortalecimento da identidade da cidade, devem-se desenvolver ações mais contundentes para reabilitar e reciclar edifícios verticais construídos entre os anos 1930 e 1970, que logo terão entre cinquenta e cem anos de vida. São Paulo já foi demolida duas vezes: nos final do século XIX, quando foi derrubada a cidade de taipa, erguida pelos portugueses e tupis; e em meados do século XX, quando foi a vez da cidade de tijolos, edificada pelos imigrantes italianos, portugueses e espanhóis. Construiu-se uma selva de concreto vertical que, gradativamente, vai virando obsoleta. Essa não será posta abaixo sem um alto custo ambiental e urbano, que precisa ser evitado. A demolição dos edifícios São Vito e Mercúrio, promovida pela prefeitura e que gerou grande quantidade de entulhos, para suprimir moradias no centro onde elas são fundamentais para um novo modelo de desenvolvimento urbano, mostra um equívoco que não pode se repetir.

Essa opção para enfrentar os edifícios obsoletos deve ser evitada a qualquer custo. Por meio do desenvolvimento de novas tecnologias de reabilitação e reciclagem de edifícios, a cidade poderá se renovar sem demolir, gerando novos espaços habitáveis, na perspectiva de crescer para dentro, equilibrando melhor os usos urbanos complementares, com maior possibilidade de deslocamento a pé.

Outra ação estrutural para equilibrar a relação entre habitação e emprego é a criação de novas centralidades e postos de trabalho nas áreas periféricas da Região Metropolitana. Sem uma intervenção forte do poder público, mediante planos de desenvolvimento econômicos nas diferentes regiões – estimulando a instalação de novas atividades e geração de mais empregos onde hoje predomina uma verdadeira cidade-dormitório -, isso não tem condições de ocorrer. Foi o que começou a ser implementado entre 2003 e 2004, com o Plano de Desenvolvimento Econômico da Zona Leste, previsto no PDE, que objetivou criar uma nova centralidade em uma região onde uma população de mais de seis milhões de moradores não tem opções de emprego. Mas, em 2005, a proposta foi paralisada pela prefeitura.

O desenvolvimento urbano das áreas periféricas, para que elas possam atrair atividades econômicas, exige qualificação urbanística e regularização fundiária, articuladas com programas de inclusão social e de economia solidária, capaz de estimular o empreendedorismo na população local. A transformação desses assentamentos periféricos precários em bairros de verdade, com infraestrutura, áreas verdes, equipamentos, documentação de posse e organização social teria enorme repercussão na redução da violência e mudaria a cara dos bairros-dormitório que caracterizam a região, marcada por uma paisagem indefinida e acinzentada.

Com usos mais bem distribuídos, é possível reduzir a extrema necessidade de mobilidade que hoje é a regra na cidade. Mais moradia onde existem empregos, melhor distribuição das atividades econômicas, beneficiando áreas carentes de oportunidade de trabalho, e, ainda, empreendimentos imobiliários com misturas de uso contribuem para deslocamentos por distâncias menores. Mas em uma metrópole a questão de mobilidade será sempre um requisito importante.

O PDE incluiu uma proposta de reorganização do sistema de transportes na cidade que apenas começou a ser implantado. Baseado em um subsistema estrutural, composto por metrô, trens metropolitanos e corredores de ônibus em faixas exclusivas, e um subsistema de alimentação capilar, com veículos de menor capacidade chegando próximo às áreas de moradia, articulados pelo bilhete único, buscou-se criar uma condição de deslocamento por transporte coletivo capaz de competir com os automóveis.

No entanto, essa proposta, que prometia tornar o deslocamento por transporte coletivo tão confortável e rápido como o uso dos automóveis, ficou pela metade. Desde 2005, nenhum novo corredor de ônibus foi implantado na cidade. O sistema de alimentação nunca foi efetivamente implantado; sua ausência dificulta um acesso rápido às estações de metrô e trem. Assim, a utilização de veículos individuais, apesar dos brutais congestionamentos, continua apresentando enormes vantagens competitivas em relação ao uso de transporte coletivo. Os investimentos em metrô e trens urbanos são indispensáveis para um enfrentamento estrutural do problema, mas são excessivamente elevados e geram resultados apenas no longo prazo.

Em contrapartida, têm tido continuidade os maciços investimentos no sistema viário, sem que haja faixas para o transporte coletivo, como ocorreu recentemente no alargamento da Marginal do Tietê, obra de 1,3 bilhão de reais, destinada exclusivamente aos automóveis e que agravou os problemas de transbordamento do rio. Esse tipo de obra funciona como um atrativo para reforçar um paradigma que deveria ser alterado. Para que o transporte coletivo se generalize, é necessário que ele possa competir em igualdade de condições com o deslocamento por automóvel. Alcançar essa condição é um desafio fundamental para que um novo modelo urbano possa ser implantado em São Paulo.

Uma outra cidade é possível?

Embora a cidade e o país tenham mudado muito nesses oito anos, as linhas gerais do PDE continuam válidas, no entanto precisam ser mais bem conhecidas e debatidas. Novos objetivos precisam ser incluídos, sobretudo no que se refere às questões ambientais e relacionadas com mudanças climáticas; outros precisam ser radicalizados. O crescimento econômico e o maior acesso da população aos bens de consumo (como automóveis), assim como a excepcional elevação do crédito habitacional, processos que em tese são positivos, estão agravando o quadro urbano em São Paulo, pois ele incide sobre uma cidade que continua crescendo com base em um modelo inadequado.

Em 2002, quando o PDE foi aprovado, a capacidade de investimento do poder público era muito baixa; de lá para cá, o orçamento do município mais do que dobrou. A prefeitura e o Estado recuperaram a capacidade de investir na cidade e têm condições de reverter esse modelo. Essa oportunidade não pode ser perdida; a sociedade precisa se engajar no debate da questão urbana e se mobilizar para influenciar nas decisões do poder público. Afinal, a cidade existe para seus cidadãos.

Recebido em 7.3.2011 e aceito em 15.3.2011.

Nabil Bonduki é professor da Universidade de São Paulo desde 1986. Foi professor de História do Urbanismo na EESC-USP e leciona planejamento urbano na FAU-USP. Foi vereador no município de São Paulo e relator do Plano Diretor Estratégico. @ –nbonduki@hotmail.com

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O modelo de desenvolvimento urbano de São Paulo precisa ser revertido https://institucional.nabilbonduki.com.br/2020/10/17/o-modelo-de-desenvolvimento-urbano-de-sao-paulo-precisa-ser-revertido-4/ Sat, 17 Oct 2020 17:39:32 +0000 https://nabilbonduki.com.br/?p=85 Estudos Avançados versão impressa ISSN 0103-4014 Estud. av. vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011 https://doi.org/10.1590/S0103-40142011000100003  RESUMOEste artigo objetiva apontar as principais alterações que são necessárias no modelo de desenvolvimento de São Paulo, com base nos objetivos definidos no Plano Diretor Estratégico, em vigor desde 2003. A continuidade do modelo que há décadas orienta as políticas urbanas na cidade Leia mais…

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Estudos Avançados
versão impressa ISSN 0103-4014
Estud. av. vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011
https://doi.org/10.1590/S0103-40142011000100003 

RESUMOEste artigo objetiva apontar as principais alterações que são necessárias no modelo de desenvolvimento de São Paulo, com base nos objetivos definidos no Plano Diretor Estratégico, em vigor desde 2003. A continuidade do modelo que há décadas orienta as políticas urbanas na cidade – baseado na expansão ilimitada da mancha urbana, na prioridade para o automóvel, na excessiva impermeabilização do solo, no esvaziamento demográfico nas áreas consolidadas, nos processos imobiliários tradicionais e na formação de periferias carentes de infraestrutura, serviços e empregos – levará a cidade para uma condição de insustentabilidade, agravando as condições caóticas já presentes. O texto mostra que existem opções consistentes, mas que sua aplicação exige aprofundar o planejamento participativo, mobilizando a sociedade, pois a mudança de um modelo fortemente arraigado contraria interesses consolidados.

Palavras-chave: Planejamento, Plano Diretor, São Paulo, Uso do solo, Desenvolvimento urbano.


ABSTRACTThis article aims to point out some of the main changes needed in São Paulo’s development model, according to the goals defined in the city’s Strategic Master Plan, in force since 2003. The continuance of the model that has guided urban policies in the city for decades – based on the unlimited expansion of the urban footprint, on the primacy of the automobile, on increasing soil imperviousness, on the depopulation of consolidated regions, on ingrained but outmoded processes of real estate development, and on the creation of outlying peripheries lacking infrastructure, services and jobs – will lead the city to an unsustainable situation, aggravating its already existing chaotic conditions. The text shows that consistent alternatives do exist, but that their implementation would require increased participatory planning and societal mobilization, because changing a deeply ingrained model runs counter to well-entrenched vested interests.

Keywords: Planning, Master Plan, São Paulo, Land use, Urban development.


Apresentação

O urbanismo sempre caminhou na corda bamba, entre ser prática profissional, disciplina científica ou utopia. Desde as cidades ideais do Renascimento, passando pelo socialismo utópico de Owen e Fourrier do início

do século XIX – que nada mais era senão planos de cidades imaginárias – e chegando ao urbanismo moderno, das vanguardas à Carta de Atenas, sonhar com ambientes habitáveis livres da desigualdade, com equilíbrio entre o ambiente construído e a natureza, onde pudesse reinar a paz, a solidariedade, a igualdade, a cidadania e a tranquilidade sempre foi o motor que impulsionou o debate de ideias novas para impulsionar o desenvolvimento urbano.

No final do século XX, porém, parecia que as energias utópicas tinham desaparecido do imaginário da sociedade e da cidade do futuro. O urbanismo estava se tornando marketing urbano, uma prática a serviço do mercado. A derrocada do falso socialismo soviético, o desencanto com ideologias transformadoras que empolgaram várias gerações desde o Iluminismo e a Revolução Francesa, a predominância do materialismo consumista, o vigor do mercado, regido pelas ideias neoliberais, e a falsa crença de que a ciência poderia prever e determinar tudo o que irá acontecer estavam levando nosso tempo, inexoravelmente, a esse apagão de energias utópicas, que foi chamado de “fim da história”.

Passou a vigorar uma descrença de que seria possível reverter, com ações coletivas, processos em curso, levando o cidadão a buscar em soluções individuais as respostas para as questões que o preocupam, situação que é particularmente forte no Brasil. O risco de violência é enfrentado com segregação e confinamento; a precariedade do transporte coletivo com o automóvel individual; a depredação ambiental com a criação de uns microcosmos de verde junto ao condomínio; a poluição do ar, com fins de semana na serra ou à beira mar; a água maltratada com garrafas pet de mineral. Soluções insuficientes a que apenas os estratos altos e médios podiam ter acesso. Para o restante da população, restava a barbárie. A criação de guetos protegidos dos males da metrópole (condomínios fechados, carros blindados, shoppings policiados, ambientes vigiados) parecia ser a única saída para superar um ambiente urbano pouco acolhedor e agressivo.

Esse clima modificou-se na primeira década do século XXI. O 11 de Setembro de 2001 representou, simbolicamente, a ruína da falsa noção de segurança que os guetos estritamente vigiados pareciam garantir. A onda de assaltos a condomínios e shopping centers, que se tornou rotina em São Paulo, mostra que a lógica da segregação não garante segurança. A crise mundial do capitalismo de 2008/2009 expôs o que já sabíamos, ou seja, que o mercado não pode correr solto, sem uma forte presença reguladora do Estado, o que desmontou os que, no Brasil, ainda defendiam uma maior desregulamentação dos processos urbanos. Os desastres climáticos, por sua vez, vêm mostrando que o “desenvolvimento a qualquer custo”, a orgia consumista e o modo de vida vigente no país, com os padrões impostos pelo mercado e assumidos pela classe média são insustentáveis no futuro próximo.

Novas esperanças, contudo, ressurgiram. A criação de novas redes globais focadas na transformação, como o Fórum Social Mundial, com sua máxima “Um novo mundo é possível”, e a articulação de pessoas por meio da internet mostram que a sociedade global dá sinais de vitalidade e de inconformismo. Superando formas clássicas de organização, novas redes mobilizam a sociedade, articulando cidadãos antes isolados, e lançam outros jeitos de construir desejos coletivos. De diferentes maneiras, recupera-se o vigor utópico, elemento indispensável para o renascimento do urbanismo.

Isso porque, sem utopia, não há urbanismo. Ele se reduziria a uma mera prática tecnocrática e burocratizada, enfrentando mais os efeitos do que as causas dos problemas urbanos, e perderia seu impulso transformador. É normal ouvir as pessoas comuns e até mesmo alguns especialistas afirmarem que as grandes metrópoles, sobretudo nos países pobres, não têm jeito. Em São Paulo, isso é muito comum, particularmente nos dias em que enchentes ou congestionamentos-monstro paralisam a cidade e apavoram os cidadãos. Não por outra razão, mais da metade da população, porcentagem que chegou a 65% em 1999, afirma que deixaria a cidade se pudesse.

Superar essa visão pessimista é essencial para que a sociedade possa se engajar na construção de alternativas. Para isso, é necessário recuperar as energias utópicas, uma dimensão passional capaz de convencer os cidadãos de que eles podem mudar processos que parecem imutáveis. Somente quando a população da cidade acreditar que é possível uma substancial alteração do quadro atual, de modo a tornar São Paulo viável do ponto de vista da qualidade de vida do conjunto de seus moradores e do equilíbrio ambiental e urbano, será possível construir esse caminho, que pode parecer utópico, mas que está ao nosso alcance, desde que se criem consensos sobre alguns aspectos fundamentais da vida da cidade e que se articule o poder público, autônomo dos interesses particulares, para coordenar esse processo transformador. Se fosse simples e fácil, não seria uma utopia.

Neste artigo, busca-se abrir um debate sobre alternativas para o desenvolvimento urbano de São Paulo. Ele somente pode ser construído mediante um processo de planejamento participativo, onde o poder público tem um papel fundamental, mas que exige o engajamento da sociedade. Não é fácil enfrentar um modelo urbanístico e um modo de vida que sustentam interesses econômicos sólidos; apenas se a sociedade tomar consciência de que eles são insustentáveis, ele poderá ser revertido.

A metrópole que temos

É evidente que São Paulo, assim como as outras metrópoles brasileiras, não pode continuar crescendo a partir do modelo urbano que hoje vigora. A cidade, no início do século XXI, caminha para o caos, e somente com a alteração desse modelo poder-se-á ter esperança de um futuro melhor.

A desigualdade urbana, funcional e social se aprofunda, gerando uma cidade partida e segregada. A mancha urbana se expande horizontalmente destruindo as áreas de proteção ambiental e gerando, por um lado, assentamentos precários distantes e carentes de infraestrutura, e, por outro, condomínios fechados de média e alta rendas, acessíveis apenas por meio de automóvel. A migração diminuiu e a população cresceu pouco a partir de 1990 (cerca de 0,7% ao ano no município de São Paulo, e 1,65% na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) nos últimos vinte anos), mas de uma forma muito desigual: as áreas mais bem urbanizadas perderam população, enquanto as regiões mais distantes, as áreas de interesse ambiental e os municípios mais pobres da Região Metropolitana continuam com crescimento elevado.

A expansão física é ainda mais grave. O espraiamento horizontal da RMSP tende a criar uma megametrópole quase inteiramente ocupada, reduzindo os espaços verdes ainda não urbanizados entre a região de Campinas, a Baixada Santista, a conurbação de São José dos Campos e a de Sorocaba. O modelo de condomínios fechados de baixa densidade se expande exatamente nessa região, tendendo a eliminar um cinturão verde que ainda existe no entorno da massa urbanizada. O processo colaborará para o aquecimento global, para alterar o comportamento hídrico, com sérias consequências no abastecimento de água e no agravamento das enchentes, além de aprofundar o modo de vida baseado no automóvel individual, única forma de acessar esses assentamentos. Esse modelo de urbanismo é incompatível com o transporte coletivo.

Os 53 distritos do município de São Paulo mais bem urbanizados e dotados de equipamentos e empregos perderam moradores, incluindo os bairros fortemente verticalizados. Áreas dotadas de infraestrutura e oportunidades, que vivem com o trânsito congestionado, se esvaziam de moradores; equipamentos já instalados, como escolas e postos de saúde, passam a apresentar ociosidade, enquanto o poder público é forçado a construir equipamentos nos bairros distantes que se adensam. Escolas fechadas nas áreas mais consolidadas e “escolas de lata” nas periféricas distantes são a imagem desse fenômeno.

A desigualdade territorial tem graves consequências para a mobilidade urbana. No distrito da República, existem mais de seiscentos empregos para cada cem moradores, índice que na Cidade Tiradentes, no extremo da Zona Leste, cai para oito. O deslocamento pendular dos bairros-dormitório para o centro expandido gera a superlotação do sistema viário e de transporte coletivo. Nessas viagens, há quem enfrente terríveis seis horas diárias em coletivos, perdendo, literalmente, um terço de sua vida útil no deslocamento.

A prioridade para o automóvel, que marcou a visão de progresso do século XX, marcada pela implantação de vias expressas e complexos viários, agrava esse problema, pois o sistema viário não comporta os quase sete milhões de veículos cadastrados na RMSP. O trânsito virou o pesadelo dos paulistanos, apesar de a prioridade nos investimentos públicos ter se dirigido para a ampliação do viário em detrimento do transporte coletivo. Não por acaso, o único plano integralmente implantado em São Paulo foi o tristemente famoso Plano de Avenidas, uma proposta de abertura de avenidas radiais e anéis perimetrais que orientou, dos anos 1930 ao final dos anos 1960, as insuficientes obras públicas na cidade.

Edifícios obsoletos, vazios ou subutilizados povoam o centro antigo, abandonado pela elite, onde mais de 18% dos domicílios estavam vagos em 2000. Numa outra paisagem, uma grande quantidade de galpões permanece sem utilização ao longo das orlas ferroviárias, área com grande potencial de transporte coletivo de massa, onde empreendimentos imobiliários começam a ser implantados desvinculados de uma estratégia urbana.

Enchentes são agravadas pela impermeabilização do solo, gerada tanto pela prática oficial, que vigora desde os anos 1930, de implantar avenidas e vias expressas nos fundos de vale, como pela ocupação irregular do solo. A tolerância ou incapacidade de coibir usos e ocupações irregulares marca um desrespeito às normas urbanísticas e ambientais.

Por falta de política e planejamento habitacional, mais de dois milhões de pessoas habitam irregularmente as regiões de proteção ambiental. Recente levantamento realizado pelo IPT mostrou que existem cerca de 110 mil moradias em áreas de risco, a maioria ocupando faixas de saneamento de córregos e encostas íngremes, ou seja, Áreas de Proteção Permanentes, segundo a definição do Código Florestal. Nas três últimas décadas, a população moradora em favelas cresceu em índices muitos superiores aos da população em geral.

Degradação do meio ambiente, desertificação do espaço público e desprezo pela memória urbana e social marcam uma cidade com identidade ameaçada. Calçadas estreitas, obstruídas ou não implantadas, poluição do espaço aéreo, córregos transformados em esgotos e a agressividade dos motoristas tornam ainda mais difícil a vida na cidade. Para garantir acesso às suas garagens, moradores criam degraus nas calçadas e as obstruem com portões que avançam para além do lote privado. Resultado de processos imobiliários formais ou informais ou da falta de civilidade dos moradores, o desrespeito ao espaço público é a regra na cidade.

Será que essa situação pode ser revertida e a metrópole dar a volta por cima, se tornando viável, ambientalmente sustentável, com um novo modelo urbano e um modo de vida mais simples e equilibrado?

Construindo um caminho alternativo: é possível surgir uma nova São Paulo no século XXI?

A utopia de uma cidade mais justa e sustentável, capaz de garantir qualidade de vida para os seus cidadãos e de se desenvolver de modo equilibrado com o meio ambiente pode parecer distante para muitos. “Esta cidade não tem mais jeito” é uma frase que se ouve com frequência em referência ao nosso futuro. A utopia de uma cidade melhor desapareceu do imaginário da população, que preferiria se mudar se isso fosse possível.

Isso, porém, não é fácil: São Paulo oferece um tão amplo leque de oportunidades de trabalho, negócios, lazer e sociabilidade que atraem uma vasta população, incapaz de se desvincular da cidade. Muitos se mudaram para fora da cidade, como para um condomínio fechado situado num raio de cem quilômetros da capital, situação frequente na população de renda mais alta, mas permanecem ligados profissionalmente a ela e passam a viver um cotidiano selvagem de deslocamento casa-trabalho, modelo de vida que exige horas na estrada e no trânsito e vários automóveis em cada domicílio. As entradas da cidade pelas principais rodovias apresentam, nas primeiras horas da manhã, congestionamentos parecidos com as avenidas mais movimentadas.

Os que optam por essa alternativa perdem a riqueza e a diversidade do cotidiano urbano, “onde se respira o ar de liberdade”, como se dizia na Idade Média, e têm que se contentar com a monocórdia e pacata vida entre iguais num território permanentemente vigiado.

A questão básica que precisa ser enfrentada é como reverter o atual modelo de crescimento da megametrópole, baseado na expansão horizontal periférica (de baixa renda) ou dispersa (de média ou alta renda); na verticalização de baixa densidade populacional na área consolidada; no uso intensivo do automóvel; no afastamento entre o emprego e a moradia; na produção exagerada de lixo; na deterioração das zonas mais antigas e de interesse histórico e na ocupação e destruição das áreas de proteção ambiental. Encontrar um caminho que interrompa esse processo e que, gradativamente, possa ser substituído por um novo modelo de desenvolvimento urbano que maximize as potencialidades de macrometrópole e, ao mesmo tempo, minimize os gravíssimos impactos socioambientais que hoje tendem a inviabilizar nosso futuro é o grande desafio.

O Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (PDE), aprovado em 2002, apontou um caminho possível, embora tenha limitações, pois foi resultado de uma ampla negociação com diferentes setores sociais, cujos interesses nem sempre permitem alterações significativas no modelo urbano predominante. Mas ele é um dos mais avançados planos diretores implantados no Brasil no recente ciclo de planejamento marcado pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Cidade (2001), regidos pelos princípios da função social da propriedade, direito a habitação, planejamento participativo e recuperação social da valorização imobiliária gerada pelos investimentos públicos. Os novos instrumentos urbanísticos criados por esse dispositivo legal, entretanto, só podem ser aplicados se previstos nos planos diretores e regulamentados por leis municipais específicas, aprovadas pelas câmaras de vereadores, o que dificulta sua implementação.

Prevendo a utilização desses instrumentos, o PDE apresentou os eixos fundamentais para uma reversão desse modelo de desenvolvimento urbano que predomina na cidade. No entanto, sua implementação tem sido truncada. Embora alguns dos instrumentos previstos e das ações estratégicas por ele previstas tenham começado a ser implantada em 2003, foram interrompida a partir de 2005, com a mudança da administração e, quando foram retomadas parcialmente, não estavam articuladas com uma estratégia global para a cidade.

Apesar disso, hoje existe certo consenso entre os vários setores da sociedade, pelo menos no discurso, em relação à maioria dos principais objetivos do PDE, que são estratégicos e de longo prazo. Para alcançá-los, entretanto, é necessário colocar em prática, no curto prazo, instrumentos, programas e ações estratégicas indispensáveis para gerar os resultados esperados, o que tem sido postergado.

Os desafios para mudar o modelo urbano de São Paulo

Reduzir as desigualdades urbanas é um desafio-síntese para tornar a cidade melhor. O modelo de uma cidade segregada, que tenha guetos que se assemelham à Suíça e enormes territórios com imensas carências e precariedade, deve ser combatido com vigor, implicando priorizar investimentos nas áreas mais carentes e usar os instrumentos tributários e urbanísticos para redistribuir riqueza. A adoção de alíquotas progressivas de acordo com o valor do imóvel, adotada nas regras do IPTU a partir de 2002, é um mecanismo nesse sentido, cobrando mais dos imóveis mais valorizados e isentando os de baixo valor.

A criação da outorga onerosa do direito de construir, ou seja, o solo criado mediante o uso mais intenso da terra, regulamentada pelo PDE, é outro instrumento para estimular a descentralização dos investimentos imobiliários privados. Isso se obtém cobrando pelo solo criado proporcionalmente mais das incorporações localizadas nos bairros consolidados, mais valorizados e procurados pelo mercado, privilegiando as regiões intermediárias e periféricas.

Reduzir as desigualdades também significa aproximar a habitação, incluindo a social, dos empregos e equipamentos, mediante duas ações estratégicas combinadas: levar a urbanização, a regularização fundiária, empregos e serviços para as áreas periféricas, que devem ser estruturadas e qualificadas do ponto de vista urbanístico, e estimular o uso residenciais, com incentivos e subsídios para as rendas mais baixas nas áreas que concentram os empregos – centro expandido e zona sudoeste. Dessa forma, podem-se reduzir a necessidade e o tempo de deslocamento, reduzindo a necessidade de uso do automóvel e meio de transporte motorizado.

Uma qualificação menos desigual dos espaços públicos é fundamental. A grande maioria dos parques bem estruturados da cidade está nos bairros de classes média e alta, enquanto, nas regiões de maior exclusão, as poucas áreas verdes existentes estão depredadas. Nessas regiões, favelas ocuparam os espaços livres, gerando um passivo ambiental que precisa ser enfrentado, até mesmo para aumentar a permeabilidade do solo na cidade, iniciativa que é indispensável para enfrentar as enchentes.

Baseado nessas premissas, o PDE estabeleceu objetivos para reestruturar a cidade, que podem ser sistematizados em oito desafios-síntese. São desafios que valem, de uma maneira geral, para a Região Metropolitana como um todo, pois as questões urbanas fundamentais são as mesmas.

Desafio 1: conter o processo de expansão horizontal da metrópole;

Desafio 2: reduzir a necessidade de deslocamento, aproximando o emprego da moradia;

Desafio 3: reestruturar o transporte coletivo e estimular sua utilização, coibindo o uso de automóvel;

Desafio 4: reabilitar e repovoar, com inclusão social, o centro metropolitano expandido e bairros consolidados, revertendo o atual processo de esvaziamento populacional;

Desafio 5: regularizar, urbanizar e qualificar loteamentos irregulares e favelas situados nas áreas periféricas;

Desafio 6: criar novas centralidades e estimular a geração de empregos nas áreas que se caracterizam como cidades-dormitório;

Desafio 7: conter o adensamento construtivo e estimular o adensamento populacional na área consolidada;

Desafio 8: valorizar e qualificar os espaços públicos, ampliar as áreas verdes, a arborização e a permeabilidade do solo.

Como enfrentar esses desafios?

O que precisa ser feito para São Paulo alcançar esses objetivos? Como cresceria a cidade? Qual o modo de vida e a sociabilidade que seus habitantes teriam? Como se moveriam? Como se relacionariam com o meio físico?

Reverter o modelo em curso exige muita determinação do poder público, até mesmo para tomar medidas pouco populares e que, certamente, poderão contrariar interesses econômicos. Isso requer que se amplie o apoio da sociedade organizada, obtido a partir de um amplo pacto gerado por um processo participativo, de modo que os cidadãos mais conscientes se tornem defensores dos principais eixos de transformação que devem ser buscados.

A chave para essa verdadeira revolução urbana é dar melhor aproveitamento e distribuição para os recursos que temos, evitando o desperdício, o consumo exagerado e a opulência. Isso significa evitar a expansão horizontal das cidades; utilizar mais e melhor o solo que já está urbanizado e os imóveis já edificados; reabilitar o parque edificado obsoleto; reurbanizar as áreas subutilizadas ou precariamente construídas; misturar usos e classes sociais para reduzir a necessidade de longos deslocamentos; gerar menos lixo e reciclar o utilizado; economizar e reutilizar a água; racionalizar o uso da energia; equilibrar a relação entre o espaço edificado e o meio ambiente; priorizar o espaço viário para veículos com maior capacidade de transportar as pessoas.

Conter o crescimento horizontal da cidade implica proibir novos parcelamentos a partir de uma linha limítrofe da área já urbanizada, isso envolvendo todos os municípios incluídos na macrometrópole. O objetivo é consolidar um cinturão verde, de baixíssima densidade no entorno da Região Metropolitana de São Paulo, impedindo que ela se conurbe integralmente com as outras aglomerações urbanas, que formam a chamada macrometrópole.

Essa diretriz exige que o Rodoanel não se converta em um mecanismo de estímulo à urbanização dispersa, de caráter claramente especulativo, mas em uma barreira para o crescimento urbano, ladeada por um grande parque em forma de anel. Isso requer que se impeçam acessos secundários, mesmo nas estradas a ele ligadas. Sem essa medida, não só as áreas de proteção dos mananciais situadas no entorno da metrópole poderão se ocupadas, como irá se criar uma área urbanizada contínua de duzentos quilômetros de diâmetro, um verdadeiro desastre ambiental.

Esse cinturão verde precisa ser ocupado com atividades produtivas e rentáveis, de caráter complementar à metrópole, com atividades compatíveis com a preservação ambiental. A criação de mecanismos de pagamento por serviços ambientais precisa ser estudada com seriedade, como mecanismo de compensação pela manutenção de uma vasta área no entorno da metrópole sem ocupação urbana. Mas também devem ser estimuladas outras propostas de ocupação desse cinturão.

Um exemplo é a Comuna da Terra, projeto em desenvolvimento pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Essas comunas são assentamentos organizados em pequenas áreas, implantados no entorno das grandes cidades e formados por trabalhadores da área urbana, antigos migrantes de zonas rurais. Algumas unidades já estão instaladas, como a Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno, no município de Franco da Rocha. Ali se produzem e se beneficiam produtos para ser comercializados na própria Região Metropolitana. Lei federal que exige que 30% das comprar realizadas pelo poder público para a merenda escolar seja proveniente da agricultura familiar pode ser um excelente estímulo para essa atividade, que geralmente sofre pela inexistência de mercado.

Assentamentos como as Comunas da Terra podem ser alternativas sustentáveis para esse cinturão, mantendo-se a atividade rural, agregando-se a população em torno de locais providos de equipamentos coletivos, com uma qualidade de vida e uma sociabilidade bastante diferenciada do que se tinha nas zonas rurais antigas.

Atividades de lazer, com manutenção e/ou recuperação da cobertura vegetal e baixíssima densidade construtiva, é outra opção adequada para esse cinturão, considerando a enorme demanda existente na cidade, sobretudo pela população de baixa renda, que vive nas periferias e, portanto, a uma pequena distância dessa região. A criação de opções de lazer com qualidade junto à cidade é indispensável para São Paulo. Com a melhoria da renda da população, processo inevitável ante o crescimento da economia e melhor distribuição de renda, toda a população desejará um feriado prolongado fora da cidade. A continuar o atual modelo, em vez de gozar de lazer, a população urbana passará dias em estradas congestionadas, o que já ocorre em algumas ocasiões.

A restrição ao crescimento horizontal exige um melhor aproveitamento e um adensamento da área já urbanizada. Isso é perfeitamente possível, pois a densidade de ocupação na RMSP, por incrível que possa parecer, ainda é relativamente baixa. A área urbanizada na região soma 2.200 km2 (sem contar com os condomínios dispersos), onde vivem cerca de vinte milhões de habitantes. Isso significa uma densidade bruta de noventa habitantes por hectare, índice ainda bastante baixo.

Nesse aspecto reside a chave da questão urbana em São Paulo: se a metrópole não deve crescer horizontalmente, onde irão ser implantados os empreendimentos imobiliários necessários para abrigar a demanda habitacional futura e os novos estabelecimentos comerciais, serviços e outros usos não residenciais? Acreditamos ser possível dar melhor aproveitamento aos espaços urbanizados, de modo a propiciar melhor qualidade tanto para os usos já existentes como para as necessidades futuras.

Como foi mostrado, o crescimento populacional tanto do município como da Região Metropolitana vem caindo significativamente e tenderá a baixar gradativamente nas próximas décadas. Isso significa que a demanda por espaço pode ser gradativamente menor. No entanto, a expansão territorial da cidade tem sido determinada, em grande medida, pelo abandono do parque edificado, por novos hábitos de consumo do espaço, seja residencial ou de comércio e serviços e, sobretudo, por um modelo de desenvolvimento urbano equivocado.

Não é por acaso que bairros que se verticalizam, com forte adensamento construtivo, perdem população. O modelo das incorporações imobiliárias, em parte relacionadas com as peculiaridades do Sistema Financeiro da Habitação, é responsável por isso, pois rejeita edificações de uso misto no lote, como existiram no passado, com térreo e sobrelojas com comércio e serviços e residencial nos demais pavimentos. Nos edifícios residenciais existe uma grande quantidade de espaços ociosos, nos térreos, onde poderiam estar atividades que acabam por ocupar, com baixíssima densidade, outros terrenos muito bem localizados.

Ademais, o tamanho médio das famílias vem caindo fortemente; em São Paulo, prevê-se que, em 2020, deva alcançar apenas 2,53 membros. Isso significa que as unidades habitacionais podem ter dimensões mais reduzidas, particularmente nas faixas de rendas média e alta, que ocupam áreas extremamente privilegiadas da cidade; são apartamentos que permanecem vazios a maior parte do dia. Por sua vez, novos condomínios criam verdadeiros clubes privados, utilizando exageradamente o espaço urbano em vez de se optar pela utilização de equipamentos coletivos, privados (clubes) ou públicos. Com melhor aproveitamento das áreas já urbanizadas, a necessidade de expansão seria muito menor.

É evidente que essas opções exigem alterações tanto no modo de vida e expectativas da população como na ação dos agentes imobiliários. São mudanças necessárias se quisermos garantir sustentabilidade para uma metrópole da dimensão de São Paulo.

É claro que a cidade continuará requerendo áreas para novos empreendimentos. A alternativa é crescer para dentro, com a estruturação de regiões subutilizada. Esse processo de reocupação deve ser desenvolvido em um novo tipo de empreendimento, com planejamento e ordenação urbanística. O atual modelo de incorporação imobiliária, geralmente unifuncional, onde cada empreendedor estabelece isoladamente as características de seu projeto, como a volumetria do edifício, dentro de regras genéricas estabelecidas pelo zoneamento, precisa ceder lugar para o planejamento completo de grandes áreas, com desenho urbanístico previamente definido, rompendo com o modelo do condomínio isolado e unifuncional.

A moradia poderia estar harmonicamente associada a usos não residenciais, configurando novos núcleos urbanos, com espaço público aberto para a cidade, onde o trabalho, o consumo e o lazer possam estar próximos à moradia, reduzindo a necessidade de longos deslocamentos urbanos.

São Paulo tem inúmeras regiões onde isso poderia ocorrer, algumas demarcadas no Plano Diretor, como as áreas de operações urbanas ao longo das ferrovias, que formam uma ferradura em torno da área mais consolidada da cidade, e as mais de novecentas Zonas Especiais de Interesse Social, áreas vazias, deterioradas ou ocupadas por favelas e loteamentos irregulares, e muitas podem ser inteiramente reurbanizadas. Não devemos temer por processos de reestruturação completa de algumas áreas da cidade, desde que isso não afete o patrimônio urbano e a memória e, o que é muito importante, não desloque, mas, ao contrário, atraia moradores de baixa e média baixa rendas.

Dentre as áreas que requerem reabilitação, uma das mais importantes é o centro histórico e os bairros que ficam no seu entorno. Trata-se de um desafio que exige ações de peso para reverter o processo combinado de subutilização e de exclusão que ela vem sofrendo. É necessário compatibilizar a reabilitação com a produção de habitação, até mesmo para a população de baixa renda, objetivando aproximar o morar do trabalhar. Para isso, foram criadas as Zonas Especiais de Interesse Social, mas é necessário muito mais: investimentos públicos para ampliar a oferta, ações para baratear os preços de prédios e terrenos para a produção habitacional, combatendo com forte carga tributária a ociosidade e a subutilização de terrenos (incluindo os ocupados por estacionamentos), prédios e galpões industriais vazios.

Os instrumentos previstos no PDE para combater a especulação e dar função social às propriedades precisam ser utilizados em todo o seu potencial. O imposto progressivo sobre imóveis vazios, ociosos ou subutilizados levou quase oito anos para ser regulamentado pela Câmara Municipal, sem que o Executivo tivesse tomado qualquer iniciativa para acelerar sua aprovação. A lei, embora positiva, ainda é insuficiente para alcançar os resultados esperados.

Por sua vez, o mecanismo que a municipalidade está utilizando para promover a reabilitação da regiões de Santa Ifigênia (chamada também de “Cracolândia” ou “Nova Luz”), a concessão urbanística, foi adotado sem amplo debate público e sem um projeto urbanístico definido. Por essas razões, tem tido efeito contrário aos seus objetivos, aprofundando a deterioração da região e gerando forte oposição de moradores e comerciantes. Em vez de se desenvolver um plano com participação da sociedade, mobilizando a iniciativa privada do modo articulado com iniciativas públicas e de organizações locais, busca-se transformar a recuperação urbana de um bairro como um negócio imobiliário. É exatamente o que não se deveria fazer.

Nessas regiões mais antigas, marcadas pela memória e indispensáveis para o fortalecimento da identidade da cidade, devem-se desenvolver ações mais contundentes para reabilitar e reciclar edifícios verticais construídos entre os anos 1930 e 1970, que logo terão entre cinquenta e cem anos de vida. São Paulo já foi demolida duas vezes: nos final do século XIX, quando foi derrubada a cidade de taipa, erguida pelos portugueses e tupis; e em meados do século XX, quando foi a vez da cidade de tijolos, edificada pelos imigrantes italianos, portugueses e espanhóis. Construiu-se uma selva de concreto vertical que, gradativamente, vai virando obsoleta. Essa não será posta abaixo sem um alto custo ambiental e urbano, que precisa ser evitado. A demolição dos edifícios São Vito e Mercúrio, promovida pela prefeitura e que gerou grande quantidade de entulhos, para suprimir moradias no centro onde elas são fundamentais para um novo modelo de desenvolvimento urbano, mostra um equívoco que não pode se repetir.

Essa opção para enfrentar os edifícios obsoletos deve ser evitada a qualquer custo. Por meio do desenvolvimento de novas tecnologias de reabilitação e reciclagem de edifícios, a cidade poderá se renovar sem demolir, gerando novos espaços habitáveis, na perspectiva de crescer para dentro, equilibrando melhor os usos urbanos complementares, com maior possibilidade de deslocamento a pé.

Outra ação estrutural para equilibrar a relação entre habitação e emprego é a criação de novas centralidades e postos de trabalho nas áreas periféricas da Região Metropolitana. Sem uma intervenção forte do poder público, mediante planos de desenvolvimento econômicos nas diferentes regiões – estimulando a instalação de novas atividades e geração de mais empregos onde hoje predomina uma verdadeira cidade-dormitório -, isso não tem condições de ocorrer. Foi o que começou a ser implementado entre 2003 e 2004, com o Plano de Desenvolvimento Econômico da Zona Leste, previsto no PDE, que objetivou criar uma nova centralidade em uma região onde uma população de mais de seis milhões de moradores não tem opções de emprego. Mas, em 2005, a proposta foi paralisada pela prefeitura.

O desenvolvimento urbano das áreas periféricas, para que elas possam atrair atividades econômicas, exige qualificação urbanística e regularização fundiária, articuladas com programas de inclusão social e de economia solidária, capaz de estimular o empreendedorismo na população local. A transformação desses assentamentos periféricos precários em bairros de verdade, com infraestrutura, áreas verdes, equipamentos, documentação de posse e organização social teria enorme repercussão na redução da violência e mudaria a cara dos bairros-dormitório que caracterizam a região, marcada por uma paisagem indefinida e acinzentada.

Com usos mais bem distribuídos, é possível reduzir a extrema necessidade de mobilidade que hoje é a regra na cidade. Mais moradia onde existem empregos, melhor distribuição das atividades econômicas, beneficiando áreas carentes de oportunidade de trabalho, e, ainda, empreendimentos imobiliários com misturas de uso contribuem para deslocamentos por distâncias menores. Mas em uma metrópole a questão de mobilidade será sempre um requisito importante.

O PDE incluiu uma proposta de reorganização do sistema de transportes na cidade que apenas começou a ser implantado. Baseado em um subsistema estrutural, composto por metrô, trens metropolitanos e corredores de ônibus em faixas exclusivas, e um subsistema de alimentação capilar, com veículos de menor capacidade chegando próximo às áreas de moradia, articulados pelo bilhete único, buscou-se criar uma condição de deslocamento por transporte coletivo capaz de competir com os automóveis.

No entanto, essa proposta, que prometia tornar o deslocamento por transporte coletivo tão confortável e rápido como o uso dos automóveis, ficou pela metade. Desde 2005, nenhum novo corredor de ônibus foi implantado na cidade. O sistema de alimentação nunca foi efetivamente implantado; sua ausência dificulta um acesso rápido às estações de metrô e trem. Assim, a utilização de veículos individuais, apesar dos brutais congestionamentos, continua apresentando enormes vantagens competitivas em relação ao uso de transporte coletivo. Os investimentos em metrô e trens urbanos são indispensáveis para um enfrentamento estrutural do problema, mas são excessivamente elevados e geram resultados apenas no longo prazo.

Em contrapartida, têm tido continuidade os maciços investimentos no sistema viário, sem que haja faixas para o transporte coletivo, como ocorreu recentemente no alargamento da Marginal do Tietê, obra de 1,3 bilhão de reais, destinada exclusivamente aos automóveis e que agravou os problemas de transbordamento do rio. Esse tipo de obra funciona como um atrativo para reforçar um paradigma que deveria ser alterado. Para que o transporte coletivo se generalize, é necessário que ele possa competir em igualdade de condições com o deslocamento por automóvel. Alcançar essa condição é um desafio fundamental para que um novo modelo urbano possa ser implantado em São Paulo.

Uma outra cidade é possível?

Embora a cidade e o país tenham mudado muito nesses oito anos, as linhas gerais do PDE continuam válidas, no entanto precisam ser mais bem conhecidas e debatidas. Novos objetivos precisam ser incluídos, sobretudo no que se refere às questões ambientais e relacionadas com mudanças climáticas; outros precisam ser radicalizados. O crescimento econômico e o maior acesso da população aos bens de consumo (como automóveis), assim como a excepcional elevação do crédito habitacional, processos que em tese são positivos, estão agravando o quadro urbano em São Paulo, pois ele incide sobre uma cidade que continua crescendo com base em um modelo inadequado.

Em 2002, quando o PDE foi aprovado, a capacidade de investimento do poder público era muito baixa; de lá para cá, o orçamento do município mais do que dobrou. A prefeitura e o Estado recuperaram a capacidade de investir na cidade e têm condições de reverter esse modelo. Essa oportunidade não pode ser perdida; a sociedade precisa se engajar no debate da questão urbana e se mobilizar para influenciar nas decisões do poder público. Afinal, a cidade existe para seus cidadãos.

Recebido em 7.3.2011 e aceito em 15.3.2011.

Nabil Bonduki é professor da Universidade de São Paulo desde 1986. Foi professor de História do Urbanismo na EESC-USP e leciona planejamento urbano na FAU-USP. Foi vereador no município de São Paulo e relator do Plano Diretor Estratégico. @ –nbonduki@hotmail.com

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O modelo de desenvolvimento urbano de São Paulo precisa ser revertido https://institucional.nabilbonduki.com.br/2020/10/17/o-modelo-de-desenvolvimento-urbano-de-sao-paulo-precisa-ser-revertido/ Sat, 17 Oct 2020 17:29:07 +0000 https://nabilbonduki.com.br/?p=76 Estudos Avançados versão impressa ISSN 0103-4014 Estud. av. vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011 https://doi.org/10.1590/S0103-40142011000100003  RESUMOEste artigo objetiva apontar as principais alterações que são necessárias no modelo de desenvolvimento de São Paulo, com base nos objetivos definidos no Plano Diretor Estratégico, em vigor desde 2003. A continuidade do modelo que há décadas orienta as políticas urbanas na cidade Leia mais…

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Estudos Avançados
versão impressa ISSN 0103-4014
Estud. av. vol.25 no.71 São Paulo jan./abr. 2011
https://doi.org/10.1590/S0103-40142011000100003 

RESUMOEste artigo objetiva apontar as principais alterações que são necessárias no modelo de desenvolvimento de São Paulo, com base nos objetivos definidos no Plano Diretor Estratégico, em vigor desde 2003. A continuidade do modelo que há décadas orienta as políticas urbanas na cidade – baseado na expansão ilimitada da mancha urbana, na prioridade para o automóvel, na excessiva impermeabilização do solo, no esvaziamento demográfico nas áreas consolidadas, nos processos imobiliários tradicionais e na formação de periferias carentes de infraestrutura, serviços e empregos – levará a cidade para uma condição de insustentabilidade, agravando as condições caóticas já presentes. O texto mostra que existem opções consistentes, mas que sua aplicação exige aprofundar o planejamento participativo, mobilizando a sociedade, pois a mudança de um modelo fortemente arraigado contraria interesses consolidados.

Palavras-chave: Planejamento, Plano Diretor, São Paulo, Uso do solo, Desenvolvimento urbano.


ABSTRACTThis article aims to point out some of the main changes needed in São Paulo’s development model, according to the goals defined in the city’s Strategic Master Plan, in force since 2003. The continuance of the model that has guided urban policies in the city for decades – based on the unlimited expansion of the urban footprint, on the primacy of the automobile, on increasing soil imperviousness, on the depopulation of consolidated regions, on ingrained but outmoded processes of real estate development, and on the creation of outlying peripheries lacking infrastructure, services and jobs – will lead the city to an unsustainable situation, aggravating its already existing chaotic conditions. The text shows that consistent alternatives do exist, but that their implementation would require increased participatory planning and societal mobilization, because changing a deeply ingrained model runs counter to well-entrenched vested interests.

Keywords: Planning, Master Plan, São Paulo, Land use, Urban development.


Apresentação

O urbanismo sempre caminhou na corda bamba, entre ser prática profissional, disciplina científica ou utopia. Desde as cidades ideais do Renascimento, passando pelo socialismo utópico de Owen e Fourrier do início

do século XIX – que nada mais era senão planos de cidades imaginárias – e chegando ao urbanismo moderno, das vanguardas à Carta de Atenas, sonhar com ambientes habitáveis livres da desigualdade, com equilíbrio entre o ambiente construído e a natureza, onde pudesse reinar a paz, a solidariedade, a igualdade, a cidadania e a tranquilidade sempre foi o motor que impulsionou o debate de ideias novas para impulsionar o desenvolvimento urbano.

No final do século XX, porém, parecia que as energias utópicas tinham desaparecido do imaginário da sociedade e da cidade do futuro. O urbanismo estava se tornando marketing urbano, uma prática a serviço do mercado. A derrocada do falso socialismo soviético, o desencanto com ideologias transformadoras que empolgaram várias gerações desde o Iluminismo e a Revolução Francesa, a predominância do materialismo consumista, o vigor do mercado, regido pelas ideias neoliberais, e a falsa crença de que a ciência poderia prever e determinar tudo o que irá acontecer estavam levando nosso tempo, inexoravelmente, a esse apagão de energias utópicas, que foi chamado de “fim da história”.

Passou a vigorar uma descrença de que seria possível reverter, com ações coletivas, processos em curso, levando o cidadão a buscar em soluções individuais as respostas para as questões que o preocupam, situação que é particularmente forte no Brasil. O risco de violência é enfrentado com segregação e confinamento; a precariedade do transporte coletivo com o automóvel individual; a depredação ambiental com a criação de uns microcosmos de verde junto ao condomínio; a poluição do ar, com fins de semana na serra ou à beira mar; a água maltratada com garrafas pet de mineral. Soluções insuficientes a que apenas os estratos altos e médios podiam ter acesso. Para o restante da população, restava a barbárie. A criação de guetos protegidos dos males da metrópole (condomínios fechados, carros blindados, shoppings policiados, ambientes vigiados) parecia ser a única saída para superar um ambiente urbano pouco acolhedor e agressivo.

Esse clima modificou-se na primeira década do século XXI. O 11 de Setembro de 2001 representou, simbolicamente, a ruína da falsa noção de segurança que os guetos estritamente vigiados pareciam garantir. A onda de assaltos a condomínios e shopping centers, que se tornou rotina em São Paulo, mostra que a lógica da segregação não garante segurança. A crise mundial do capitalismo de 2008/2009 expôs o que já sabíamos, ou seja, que o mercado não pode correr solto, sem uma forte presença reguladora do Estado, o que desmontou os que, no Brasil, ainda defendiam uma maior desregulamentação dos processos urbanos. Os desastres climáticos, por sua vez, vêm mostrando que o “desenvolvimento a qualquer custo”, a orgia consumista e o modo de vida vigente no país, com os padrões impostos pelo mercado e assumidos pela classe média são insustentáveis no futuro próximo.

Novas esperanças, contudo, ressurgiram. A criação de novas redes globais focadas na transformação, como o Fórum Social Mundial, com sua máxima “Um novo mundo é possível”, e a articulação de pessoas por meio da internet mostram que a sociedade global dá sinais de vitalidade e de inconformismo. Superando formas clássicas de organização, novas redes mobilizam a sociedade, articulando cidadãos antes isolados, e lançam outros jeitos de construir desejos coletivos. De diferentes maneiras, recupera-se o vigor utópico, elemento indispensável para o renascimento do urbanismo.

Isso porque, sem utopia, não há urbanismo. Ele se reduziria a uma mera prática tecnocrática e burocratizada, enfrentando mais os efeitos do que as causas dos problemas urbanos, e perderia seu impulso transformador. É normal ouvir as pessoas comuns e até mesmo alguns especialistas afirmarem que as grandes metrópoles, sobretudo nos países pobres, não têm jeito. Em São Paulo, isso é muito comum, particularmente nos dias em que enchentes ou congestionamentos-monstro paralisam a cidade e apavoram os cidadãos. Não por outra razão, mais da metade da população, porcentagem que chegou a 65% em 1999, afirma que deixaria a cidade se pudesse.

Superar essa visão pessimista é essencial para que a sociedade possa se engajar na construção de alternativas. Para isso, é necessário recuperar as energias utópicas, uma dimensão passional capaz de convencer os cidadãos de que eles podem mudar processos que parecem imutáveis. Somente quando a população da cidade acreditar que é possível uma substancial alteração do quadro atual, de modo a tornar São Paulo viável do ponto de vista da qualidade de vida do conjunto de seus moradores e do equilíbrio ambiental e urbano, será possível construir esse caminho, que pode parecer utópico, mas que está ao nosso alcance, desde que se criem consensos sobre alguns aspectos fundamentais da vida da cidade e que se articule o poder público, autônomo dos interesses particulares, para coordenar esse processo transformador. Se fosse simples e fácil, não seria uma utopia.

Neste artigo, busca-se abrir um debate sobre alternativas para o desenvolvimento urbano de São Paulo. Ele somente pode ser construído mediante um processo de planejamento participativo, onde o poder público tem um papel fundamental, mas que exige o engajamento da sociedade. Não é fácil enfrentar um modelo urbanístico e um modo de vida que sustentam interesses econômicos sólidos; apenas se a sociedade tomar consciência de que eles são insustentáveis, ele poderá ser revertido.

A metrópole que temos

É evidente que São Paulo, assim como as outras metrópoles brasileiras, não pode continuar crescendo a partir do modelo urbano que hoje vigora. A cidade, no início do século XXI, caminha para o caos, e somente com a alteração desse modelo poder-se-á ter esperança de um futuro melhor.

A desigualdade urbana, funcional e social se aprofunda, gerando uma cidade partida e segregada. A mancha urbana se expande horizontalmente destruindo as áreas de proteção ambiental e gerando, por um lado, assentamentos precários distantes e carentes de infraestrutura, e, por outro, condomínios fechados de média e alta rendas, acessíveis apenas por meio de automóvel. A migração diminuiu e a população cresceu pouco a partir de 1990 (cerca de 0,7% ao ano no município de São Paulo, e 1,65% na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) nos últimos vinte anos), mas de uma forma muito desigual: as áreas mais bem urbanizadas perderam população, enquanto as regiões mais distantes, as áreas de interesse ambiental e os municípios mais pobres da Região Metropolitana continuam com crescimento elevado.

A expansão física é ainda mais grave. O espraiamento horizontal da RMSP tende a criar uma megametrópole quase inteiramente ocupada, reduzindo os espaços verdes ainda não urbanizados entre a região de Campinas, a Baixada Santista, a conurbação de São José dos Campos e a de Sorocaba. O modelo de condomínios fechados de baixa densidade se expande exatamente nessa região, tendendo a eliminar um cinturão verde que ainda existe no entorno da massa urbanizada. O processo colaborará para o aquecimento global, para alterar o comportamento hídrico, com sérias consequências no abastecimento de água e no agravamento das enchentes, além de aprofundar o modo de vida baseado no automóvel individual, única forma de acessar esses assentamentos. Esse modelo de urbanismo é incompatível com o transporte coletivo.

Os 53 distritos do município de São Paulo mais bem urbanizados e dotados de equipamentos e empregos perderam moradores, incluindo os bairros fortemente verticalizados. Áreas dotadas de infraestrutura e oportunidades, que vivem com o trânsito congestionado, se esvaziam de moradores; equipamentos já instalados, como escolas e postos de saúde, passam a apresentar ociosidade, enquanto o poder público é forçado a construir equipamentos nos bairros distantes que se adensam. Escolas fechadas nas áreas mais consolidadas e “escolas de lata” nas periféricas distantes são a imagem desse fenômeno.

A desigualdade territorial tem graves consequências para a mobilidade urbana. No distrito da República, existem mais de seiscentos empregos para cada cem moradores, índice que na Cidade Tiradentes, no extremo da Zona Leste, cai para oito. O deslocamento pendular dos bairros-dormitório para o centro expandido gera a superlotação do sistema viário e de transporte coletivo. Nessas viagens, há quem enfrente terríveis seis horas diárias em coletivos, perdendo, literalmente, um terço de sua vida útil no deslocamento.

A prioridade para o automóvel, que marcou a visão de progresso do século XX, marcada pela implantação de vias expressas e complexos viários, agrava esse problema, pois o sistema viário não comporta os quase sete milhões de veículos cadastrados na RMSP. O trânsito virou o pesadelo dos paulistanos, apesar de a prioridade nos investimentos públicos ter se dirigido para a ampliação do viário em detrimento do transporte coletivo. Não por acaso, o único plano integralmente implantado em São Paulo foi o tristemente famoso Plano de Avenidas, uma proposta de abertura de avenidas radiais e anéis perimetrais que orientou, dos anos 1930 ao final dos anos 1960, as insuficientes obras públicas na cidade.

Edifícios obsoletos, vazios ou subutilizados povoam o centro antigo, abandonado pela elite, onde mais de 18% dos domicílios estavam vagos em 2000. Numa outra paisagem, uma grande quantidade de galpões permanece sem utilização ao longo das orlas ferroviárias, área com grande potencial de transporte coletivo de massa, onde empreendimentos imobiliários começam a ser implantados desvinculados de uma estratégia urbana.

Enchentes são agravadas pela impermeabilização do solo, gerada tanto pela prática oficial, que vigora desde os anos 1930, de implantar avenidas e vias expressas nos fundos de vale, como pela ocupação irregular do solo. A tolerância ou incapacidade de coibir usos e ocupações irregulares marca um desrespeito às normas urbanísticas e ambientais.

Por falta de política e planejamento habitacional, mais de dois milhões de pessoas habitam irregularmente as regiões de proteção ambiental. Recente levantamento realizado pelo IPT mostrou que existem cerca de 110 mil moradias em áreas de risco, a maioria ocupando faixas de saneamento de córregos e encostas íngremes, ou seja, Áreas de Proteção Permanentes, segundo a definição do Código Florestal. Nas três últimas décadas, a população moradora em favelas cresceu em índices muitos superiores aos da população em geral.

Degradação do meio ambiente, desertificação do espaço público e desprezo pela memória urbana e social marcam uma cidade com identidade ameaçada. Calçadas estreitas, obstruídas ou não implantadas, poluição do espaço aéreo, córregos transformados em esgotos e a agressividade dos motoristas tornam ainda mais difícil a vida na cidade. Para garantir acesso às suas garagens, moradores criam degraus nas calçadas e as obstruem com portões que avançam para além do lote privado. Resultado de processos imobiliários formais ou informais ou da falta de civilidade dos moradores, o desrespeito ao espaço público é a regra na cidade.

Será que essa situação pode ser revertida e a metrópole dar a volta por cima, se tornando viável, ambientalmente sustentável, com um novo modelo urbano e um modo de vida mais simples e equilibrado?

Construindo um caminho alternativo: é possível surgir uma nova São Paulo no século XXI?

A utopia de uma cidade mais justa e sustentável, capaz de garantir qualidade de vida para os seus cidadãos e de se desenvolver de modo equilibrado com o meio ambiente pode parecer distante para muitos. “Esta cidade não tem mais jeito” é uma frase que se ouve com frequência em referência ao nosso futuro. A utopia de uma cidade melhor desapareceu do imaginário da população, que preferiria se mudar se isso fosse possível.

Isso, porém, não é fácil: São Paulo oferece um tão amplo leque de oportunidades de trabalho, negócios, lazer e sociabilidade que atraem uma vasta população, incapaz de se desvincular da cidade. Muitos se mudaram para fora da cidade, como para um condomínio fechado situado num raio de cem quilômetros da capital, situação frequente na população de renda mais alta, mas permanecem ligados profissionalmente a ela e passam a viver um cotidiano selvagem de deslocamento casa-trabalho, modelo de vida que exige horas na estrada e no trânsito e vários automóveis em cada domicílio. As entradas da cidade pelas principais rodovias apresentam, nas primeiras horas da manhã, congestionamentos parecidos com as avenidas mais movimentadas.

Os que optam por essa alternativa perdem a riqueza e a diversidade do cotidiano urbano, “onde se respira o ar de liberdade”, como se dizia na Idade Média, e têm que se contentar com a monocórdia e pacata vida entre iguais num território permanentemente vigiado.

A questão básica que precisa ser enfrentada é como reverter o atual modelo de crescimento da megametrópole, baseado na expansão horizontal periférica (de baixa renda) ou dispersa (de média ou alta renda); na verticalização de baixa densidade populacional na área consolidada; no uso intensivo do automóvel; no afastamento entre o emprego e a moradia; na produção exagerada de lixo; na deterioração das zonas mais antigas e de interesse histórico e na ocupação e destruição das áreas de proteção ambiental. Encontrar um caminho que interrompa esse processo e que, gradativamente, possa ser substituído por um novo modelo de desenvolvimento urbano que maximize as potencialidades de macrometrópole e, ao mesmo tempo, minimize os gravíssimos impactos socioambientais que hoje tendem a inviabilizar nosso futuro é o grande desafio.

O Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo (PDE), aprovado em 2002, apontou um caminho possível, embora tenha limitações, pois foi resultado de uma ampla negociação com diferentes setores sociais, cujos interesses nem sempre permitem alterações significativas no modelo urbano predominante. Mas ele é um dos mais avançados planos diretores implantados no Brasil no recente ciclo de planejamento marcado pela Constituição de 1988 e pelo Estatuto da Cidade (2001), regidos pelos princípios da função social da propriedade, direito a habitação, planejamento participativo e recuperação social da valorização imobiliária gerada pelos investimentos públicos. Os novos instrumentos urbanísticos criados por esse dispositivo legal, entretanto, só podem ser aplicados se previstos nos planos diretores e regulamentados por leis municipais específicas, aprovadas pelas câmaras de vereadores, o que dificulta sua implementação.

Prevendo a utilização desses instrumentos, o PDE apresentou os eixos fundamentais para uma reversão desse modelo de desenvolvimento urbano que predomina na cidade. No entanto, sua implementação tem sido truncada. Embora alguns dos instrumentos previstos e das ações estratégicas por ele previstas tenham começado a ser implantada em 2003, foram interrompida a partir de 2005, com a mudança da administração e, quando foram retomadas parcialmente, não estavam articuladas com uma estratégia global para a cidade.

Apesar disso, hoje existe certo consenso entre os vários setores da sociedade, pelo menos no discurso, em relação à maioria dos principais objetivos do PDE, que são estratégicos e de longo prazo. Para alcançá-los, entretanto, é necessário colocar em prática, no curto prazo, instrumentos, programas e ações estratégicas indispensáveis para gerar os resultados esperados, o que tem sido postergado.

Os desafios para mudar o modelo urbano de São Paulo

Reduzir as desigualdades urbanas é um desafio-síntese para tornar a cidade melhor. O modelo de uma cidade segregada, que tenha guetos que se assemelham à Suíça e enormes territórios com imensas carências e precariedade, deve ser combatido com vigor, implicando priorizar investimentos nas áreas mais carentes e usar os instrumentos tributários e urbanísticos para redistribuir riqueza. A adoção de alíquotas progressivas de acordo com o valor do imóvel, adotada nas regras do IPTU a partir de 2002, é um mecanismo nesse sentido, cobrando mais dos imóveis mais valorizados e isentando os de baixo valor.

A criação da outorga onerosa do direito de construir, ou seja, o solo criado mediante o uso mais intenso da terra, regulamentada pelo PDE, é outro instrumento para estimular a descentralização dos investimentos imobiliários privados. Isso se obtém cobrando pelo solo criado proporcionalmente mais das incorporações localizadas nos bairros consolidados, mais valorizados e procurados pelo mercado, privilegiando as regiões intermediárias e periféricas.

Reduzir as desigualdades também significa aproximar a habitação, incluindo a social, dos empregos e equipamentos, mediante duas ações estratégicas combinadas: levar a urbanização, a regularização fundiária, empregos e serviços para as áreas periféricas, que devem ser estruturadas e qualificadas do ponto de vista urbanístico, e estimular o uso residenciais, com incentivos e subsídios para as rendas mais baixas nas áreas que concentram os empregos – centro expandido e zona sudoeste. Dessa forma, podem-se reduzir a necessidade e o tempo de deslocamento, reduzindo a necessidade de uso do automóvel e meio de transporte motorizado.

Uma qualificação menos desigual dos espaços públicos é fundamental. A grande maioria dos parques bem estruturados da cidade está nos bairros de classes média e alta, enquanto, nas regiões de maior exclusão, as poucas áreas verdes existentes estão depredadas. Nessas regiões, favelas ocuparam os espaços livres, gerando um passivo ambiental que precisa ser enfrentado, até mesmo para aumentar a permeabilidade do solo na cidade, iniciativa que é indispensável para enfrentar as enchentes.

Baseado nessas premissas, o PDE estabeleceu objetivos para reestruturar a cidade, que podem ser sistematizados em oito desafios-síntese. São desafios que valem, de uma maneira geral, para a Região Metropolitana como um todo, pois as questões urbanas fundamentais são as mesmas.

Desafio 1: conter o processo de expansão horizontal da metrópole;

Desafio 2: reduzir a necessidade de deslocamento, aproximando o emprego da moradia;

Desafio 3: reestruturar o transporte coletivo e estimular sua utilização, coibindo o uso de automóvel;

Desafio 4: reabilitar e repovoar, com inclusão social, o centro metropolitano expandido e bairros consolidados, revertendo o atual processo de esvaziamento populacional;

Desafio 5: regularizar, urbanizar e qualificar loteamentos irregulares e favelas situados nas áreas periféricas;

Desafio 6: criar novas centralidades e estimular a geração de empregos nas áreas que se caracterizam como cidades-dormitório;

Desafio 7: conter o adensamento construtivo e estimular o adensamento populacional na área consolidada;

Desafio 8: valorizar e qualificar os espaços públicos, ampliar as áreas verdes, a arborização e a permeabilidade do solo.

Como enfrentar esses desafios?

O que precisa ser feito para São Paulo alcançar esses objetivos? Como cresceria a cidade? Qual o modo de vida e a sociabilidade que seus habitantes teriam? Como se moveriam? Como se relacionariam com o meio físico?

Reverter o modelo em curso exige muita determinação do poder público, até mesmo para tomar medidas pouco populares e que, certamente, poderão contrariar interesses econômicos. Isso requer que se amplie o apoio da sociedade organizada, obtido a partir de um amplo pacto gerado por um processo participativo, de modo que os cidadãos mais conscientes se tornem defensores dos principais eixos de transformação que devem ser buscados.

A chave para essa verdadeira revolução urbana é dar melhor aproveitamento e distribuição para os recursos que temos, evitando o desperdício, o consumo exagerado e a opulência. Isso significa evitar a expansão horizontal das cidades; utilizar mais e melhor o solo que já está urbanizado e os imóveis já edificados; reabilitar o parque edificado obsoleto; reurbanizar as áreas subutilizadas ou precariamente construídas; misturar usos e classes sociais para reduzir a necessidade de longos deslocamentos; gerar menos lixo e reciclar o utilizado; economizar e reutilizar a água; racionalizar o uso da energia; equilibrar a relação entre o espaço edificado e o meio ambiente; priorizar o espaço viário para veículos com maior capacidade de transportar as pessoas.

Conter o crescimento horizontal da cidade implica proibir novos parcelamentos a partir de uma linha limítrofe da área já urbanizada, isso envolvendo todos os municípios incluídos na macrometrópole. O objetivo é consolidar um cinturão verde, de baixíssima densidade no entorno da Região Metropolitana de São Paulo, impedindo que ela se conurbe integralmente com as outras aglomerações urbanas, que formam a chamada macrometrópole.

Essa diretriz exige que o Rodoanel não se converta em um mecanismo de estímulo à urbanização dispersa, de caráter claramente especulativo, mas em uma barreira para o crescimento urbano, ladeada por um grande parque em forma de anel. Isso requer que se impeçam acessos secundários, mesmo nas estradas a ele ligadas. Sem essa medida, não só as áreas de proteção dos mananciais situadas no entorno da metrópole poderão se ocupadas, como irá se criar uma área urbanizada contínua de duzentos quilômetros de diâmetro, um verdadeiro desastre ambiental.

Esse cinturão verde precisa ser ocupado com atividades produtivas e rentáveis, de caráter complementar à metrópole, com atividades compatíveis com a preservação ambiental. A criação de mecanismos de pagamento por serviços ambientais precisa ser estudada com seriedade, como mecanismo de compensação pela manutenção de uma vasta área no entorno da metrópole sem ocupação urbana. Mas também devem ser estimuladas outras propostas de ocupação desse cinturão.

Um exemplo é a Comuna da Terra, projeto em desenvolvimento pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Essas comunas são assentamentos organizados em pequenas áreas, implantados no entorno das grandes cidades e formados por trabalhadores da área urbana, antigos migrantes de zonas rurais. Algumas unidades já estão instaladas, como a Comuna da Terra Dom Tomás Balduíno, no município de Franco da Rocha. Ali se produzem e se beneficiam produtos para ser comercializados na própria Região Metropolitana. Lei federal que exige que 30% das comprar realizadas pelo poder público para a merenda escolar seja proveniente da agricultura familiar pode ser um excelente estímulo para essa atividade, que geralmente sofre pela inexistência de mercado.

Assentamentos como as Comunas da Terra podem ser alternativas sustentáveis para esse cinturão, mantendo-se a atividade rural, agregando-se a população em torno de locais providos de equipamentos coletivos, com uma qualidade de vida e uma sociabilidade bastante diferenciada do que se tinha nas zonas rurais antigas.

Atividades de lazer, com manutenção e/ou recuperação da cobertura vegetal e baixíssima densidade construtiva, é outra opção adequada para esse cinturão, considerando a enorme demanda existente na cidade, sobretudo pela população de baixa renda, que vive nas periferias e, portanto, a uma pequena distância dessa região. A criação de opções de lazer com qualidade junto à cidade é indispensável para São Paulo. Com a melhoria da renda da população, processo inevitável ante o crescimento da economia e melhor distribuição de renda, toda a população desejará um feriado prolongado fora da cidade. A continuar o atual modelo, em vez de gozar de lazer, a população urbana passará dias em estradas congestionadas, o que já ocorre em algumas ocasiões.

A restrição ao crescimento horizontal exige um melhor aproveitamento e um adensamento da área já urbanizada. Isso é perfeitamente possível, pois a densidade de ocupação na RMSP, por incrível que possa parecer, ainda é relativamente baixa. A área urbanizada na região soma 2.200 km2 (sem contar com os condomínios dispersos), onde vivem cerca de vinte milhões de habitantes. Isso significa uma densidade bruta de noventa habitantes por hectare, índice ainda bastante baixo.

Nesse aspecto reside a chave da questão urbana em São Paulo: se a metrópole não deve crescer horizontalmente, onde irão ser implantados os empreendimentos imobiliários necessários para abrigar a demanda habitacional futura e os novos estabelecimentos comerciais, serviços e outros usos não residenciais? Acreditamos ser possível dar melhor aproveitamento aos espaços urbanizados, de modo a propiciar melhor qualidade tanto para os usos já existentes como para as necessidades futuras.

Como foi mostrado, o crescimento populacional tanto do município como da Região Metropolitana vem caindo significativamente e tenderá a baixar gradativamente nas próximas décadas. Isso significa que a demanda por espaço pode ser gradativamente menor. No entanto, a expansão territorial da cidade tem sido determinada, em grande medida, pelo abandono do parque edificado, por novos hábitos de consumo do espaço, seja residencial ou de comércio e serviços e, sobretudo, por um modelo de desenvolvimento urbano equivocado.

Não é por acaso que bairros que se verticalizam, com forte adensamento construtivo, perdem população. O modelo das incorporações imobiliárias, em parte relacionadas com as peculiaridades do Sistema Financeiro da Habitação, é responsável por isso, pois rejeita edificações de uso misto no lote, como existiram no passado, com térreo e sobrelojas com comércio e serviços e residencial nos demais pavimentos. Nos edifícios residenciais existe uma grande quantidade de espaços ociosos, nos térreos, onde poderiam estar atividades que acabam por ocupar, com baixíssima densidade, outros terrenos muito bem localizados.

Ademais, o tamanho médio das famílias vem caindo fortemente; em São Paulo, prevê-se que, em 2020, deva alcançar apenas 2,53 membros. Isso significa que as unidades habitacionais podem ter dimensões mais reduzidas, particularmente nas faixas de rendas média e alta, que ocupam áreas extremamente privilegiadas da cidade; são apartamentos que permanecem vazios a maior parte do dia. Por sua vez, novos condomínios criam verdadeiros clubes privados, utilizando exageradamente o espaço urbano em vez de se optar pela utilização de equipamentos coletivos, privados (clubes) ou públicos. Com melhor aproveitamento das áreas já urbanizadas, a necessidade de expansão seria muito menor.

É evidente que essas opções exigem alterações tanto no modo de vida e expectativas da população como na ação dos agentes imobiliários. São mudanças necessárias se quisermos garantir sustentabilidade para uma metrópole da dimensão de São Paulo.

É claro que a cidade continuará requerendo áreas para novos empreendimentos. A alternativa é crescer para dentro, com a estruturação de regiões subutilizada. Esse processo de reocupação deve ser desenvolvido em um novo tipo de empreendimento, com planejamento e ordenação urbanística. O atual modelo de incorporação imobiliária, geralmente unifuncional, onde cada empreendedor estabelece isoladamente as características de seu projeto, como a volumetria do edifício, dentro de regras genéricas estabelecidas pelo zoneamento, precisa ceder lugar para o planejamento completo de grandes áreas, com desenho urbanístico previamente definido, rompendo com o modelo do condomínio isolado e unifuncional.

A moradia poderia estar harmonicamente associada a usos não residenciais, configurando novos núcleos urbanos, com espaço público aberto para a cidade, onde o trabalho, o consumo e o lazer possam estar próximos à moradia, reduzindo a necessidade de longos deslocamentos urbanos.

São Paulo tem inúmeras regiões onde isso poderia ocorrer, algumas demarcadas no Plano Diretor, como as áreas de operações urbanas ao longo das ferrovias, que formam uma ferradura em torno da área mais consolidada da cidade, e as mais de novecentas Zonas Especiais de Interesse Social, áreas vazias, deterioradas ou ocupadas por favelas e loteamentos irregulares, e muitas podem ser inteiramente reurbanizadas. Não devemos temer por processos de reestruturação completa de algumas áreas da cidade, desde que isso não afete o patrimônio urbano e a memória e, o que é muito importante, não desloque, mas, ao contrário, atraia moradores de baixa e média baixa rendas.

Dentre as áreas que requerem reabilitação, uma das mais importantes é o centro histórico e os bairros que ficam no seu entorno. Trata-se de um desafio que exige ações de peso para reverter o processo combinado de subutilização e de exclusão que ela vem sofrendo. É necessário compatibilizar a reabilitação com a produção de habitação, até mesmo para a população de baixa renda, objetivando aproximar o morar do trabalhar. Para isso, foram criadas as Zonas Especiais de Interesse Social, mas é necessário muito mais: investimentos públicos para ampliar a oferta, ações para baratear os preços de prédios e terrenos para a produção habitacional, combatendo com forte carga tributária a ociosidade e a subutilização de terrenos (incluindo os ocupados por estacionamentos), prédios e galpões industriais vazios.

Os instrumentos previstos no PDE para combater a especulação e dar função social às propriedades precisam ser utilizados em todo o seu potencial. O imposto progressivo sobre imóveis vazios, ociosos ou subutilizados levou quase oito anos para ser regulamentado pela Câmara Municipal, sem que o Executivo tivesse tomado qualquer iniciativa para acelerar sua aprovação. A lei, embora positiva, ainda é insuficiente para alcançar os resultados esperados.

Por sua vez, o mecanismo que a municipalidade está utilizando para promover a reabilitação da regiões de Santa Ifigênia (chamada também de “Cracolândia” ou “Nova Luz”), a concessão urbanística, foi adotado sem amplo debate público e sem um projeto urbanístico definido. Por essas razões, tem tido efeito contrário aos seus objetivos, aprofundando a deterioração da região e gerando forte oposição de moradores e comerciantes. Em vez de se desenvolver um plano com participação da sociedade, mobilizando a iniciativa privada do modo articulado com iniciativas públicas e de organizações locais, busca-se transformar a recuperação urbana de um bairro como um negócio imobiliário. É exatamente o que não se deveria fazer.

Nessas regiões mais antigas, marcadas pela memória e indispensáveis para o fortalecimento da identidade da cidade, devem-se desenvolver ações mais contundentes para reabilitar e reciclar edifícios verticais construídos entre os anos 1930 e 1970, que logo terão entre cinquenta e cem anos de vida. São Paulo já foi demolida duas vezes: nos final do século XIX, quando foi derrubada a cidade de taipa, erguida pelos portugueses e tupis; e em meados do século XX, quando foi a vez da cidade de tijolos, edificada pelos imigrantes italianos, portugueses e espanhóis. Construiu-se uma selva de concreto vertical que, gradativamente, vai virando obsoleta. Essa não será posta abaixo sem um alto custo ambiental e urbano, que precisa ser evitado. A demolição dos edifícios São Vito e Mercúrio, promovida pela prefeitura e que gerou grande quantidade de entulhos, para suprimir moradias no centro onde elas são fundamentais para um novo modelo de desenvolvimento urbano, mostra um equívoco que não pode se repetir.

Essa opção para enfrentar os edifícios obsoletos deve ser evitada a qualquer custo. Por meio do desenvolvimento de novas tecnologias de reabilitação e reciclagem de edifícios, a cidade poderá se renovar sem demolir, gerando novos espaços habitáveis, na perspectiva de crescer para dentro, equilibrando melhor os usos urbanos complementares, com maior possibilidade de deslocamento a pé.

Outra ação estrutural para equilibrar a relação entre habitação e emprego é a criação de novas centralidades e postos de trabalho nas áreas periféricas da Região Metropolitana. Sem uma intervenção forte do poder público, mediante planos de desenvolvimento econômicos nas diferentes regiões – estimulando a instalação de novas atividades e geração de mais empregos onde hoje predomina uma verdadeira cidade-dormitório -, isso não tem condições de ocorrer. Foi o que começou a ser implementado entre 2003 e 2004, com o Plano de Desenvolvimento Econômico da Zona Leste, previsto no PDE, que objetivou criar uma nova centralidade em uma região onde uma população de mais de seis milhões de moradores não tem opções de emprego. Mas, em 2005, a proposta foi paralisada pela prefeitura.

O desenvolvimento urbano das áreas periféricas, para que elas possam atrair atividades econômicas, exige qualificação urbanística e regularização fundiária, articuladas com programas de inclusão social e de economia solidária, capaz de estimular o empreendedorismo na população local. A transformação desses assentamentos periféricos precários em bairros de verdade, com infraestrutura, áreas verdes, equipamentos, documentação de posse e organização social teria enorme repercussão na redução da violência e mudaria a cara dos bairros-dormitório que caracterizam a região, marcada por uma paisagem indefinida e acinzentada.

Com usos mais bem distribuídos, é possível reduzir a extrema necessidade de mobilidade que hoje é a regra na cidade. Mais moradia onde existem empregos, melhor distribuição das atividades econômicas, beneficiando áreas carentes de oportunidade de trabalho, e, ainda, empreendimentos imobiliários com misturas de uso contribuem para deslocamentos por distâncias menores. Mas em uma metrópole a questão de mobilidade será sempre um requisito importante.

O PDE incluiu uma proposta de reorganização do sistema de transportes na cidade que apenas começou a ser implantado. Baseado em um subsistema estrutural, composto por metrô, trens metropolitanos e corredores de ônibus em faixas exclusivas, e um subsistema de alimentação capilar, com veículos de menor capacidade chegando próximo às áreas de moradia, articulados pelo bilhete único, buscou-se criar uma condição de deslocamento por transporte coletivo capaz de competir com os automóveis.

No entanto, essa proposta, que prometia tornar o deslocamento por transporte coletivo tão confortável e rápido como o uso dos automóveis, ficou pela metade. Desde 2005, nenhum novo corredor de ônibus foi implantado na cidade. O sistema de alimentação nunca foi efetivamente implantado; sua ausência dificulta um acesso rápido às estações de metrô e trem. Assim, a utilização de veículos individuais, apesar dos brutais congestionamentos, continua apresentando enormes vantagens competitivas em relação ao uso de transporte coletivo. Os investimentos em metrô e trens urbanos são indispensáveis para um enfrentamento estrutural do problema, mas são excessivamente elevados e geram resultados apenas no longo prazo.

Em contrapartida, têm tido continuidade os maciços investimentos no sistema viário, sem que haja faixas para o transporte coletivo, como ocorreu recentemente no alargamento da Marginal do Tietê, obra de 1,3 bilhão de reais, destinada exclusivamente aos automóveis e que agravou os problemas de transbordamento do rio. Esse tipo de obra funciona como um atrativo para reforçar um paradigma que deveria ser alterado. Para que o transporte coletivo se generalize, é necessário que ele possa competir em igualdade de condições com o deslocamento por automóvel. Alcançar essa condição é um desafio fundamental para que um novo modelo urbano possa ser implantado em São Paulo.

Uma outra cidade é possível?

Embora a cidade e o país tenham mudado muito nesses oito anos, as linhas gerais do PDE continuam válidas, no entanto precisam ser mais bem conhecidas e debatidas. Novos objetivos precisam ser incluídos, sobretudo no que se refere às questões ambientais e relacionadas com mudanças climáticas; outros precisam ser radicalizados. O crescimento econômico e o maior acesso da população aos bens de consumo (como automóveis), assim como a excepcional elevação do crédito habitacional, processos que em tese são positivos, estão agravando o quadro urbano em São Paulo, pois ele incide sobre uma cidade que continua crescendo com base em um modelo inadequado.

Em 2002, quando o PDE foi aprovado, a capacidade de investimento do poder público era muito baixa; de lá para cá, o orçamento do município mais do que dobrou. A prefeitura e o Estado recuperaram a capacidade de investir na cidade e têm condições de reverter esse modelo. Essa oportunidade não pode ser perdida; a sociedade precisa se engajar no debate da questão urbana e se mobilizar para influenciar nas decisões do poder público. Afinal, a cidade existe para seus cidadãos.

Recebido em 7.3.2011 e aceito em 15.3.2011.

Nabil Bonduki é professor da Universidade de São Paulo desde 1986. Foi professor de História do Urbanismo na EESC-USP e leciona planejamento urbano na FAU-USP. Foi vereador no município de São Paulo e relator do Plano Diretor Estratégico. @ –nbonduki@hotmail.com

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O modelo de desenvolvimento urbano de São Paulo precisa ser revertido (2011) https://institucional.nabilbonduki.com.br/2011/03/07/o-modelo-de-desenvolvimento-urbano-de-sao-paulo-precisa-ser-revertido-5/ Mon, 07 Mar 2011 01:14:43 +0000 https://nabilbonduki.com.br/?p=416 “Este artigo objetiva apontar as principais alterações que são necessárias no modelo de desenvolvimento de São Paulo, com base nos objetivos definidos no Plano Diretor Estratégico, em vigor desde 2003. A continuidade do modelo que há décadas orienta as políticas urbanas na cidade – baseado na expansão ilimitada da mancha Leia mais…

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“Este artigo objetiva apontar as principais alterações que são necessárias no modelo de desenvolvimento de São Paulo, com base nos objetivos definidos no Plano Diretor Estratégico, em vigor desde 2003. A continuidade do modelo que há décadas orienta as políticas urbanas na cidade – baseado na expansão ilimitada da mancha urbana, na prioridade para o automóvel, na excessiva impermeabilização do solo, no esvaziamento demográfico nas áreas consolidadas, nos processos imobiliários tradicionais e na formação de periferias carentes de infraestrutura, serviços e empregos – levará a cidade para uma condição de insustentabilidade, agravando as condições caóticas já presentes. O texto mostra que existem opções consistentes, mas que sua aplicação exige aprofundar o planejamento participativo, mobilizando a sociedade, pois a mudança de um modelo fortemente arraigado contraria interesses consolidados.

Palavras-chave: Planejamento, Plano Diretor, São Paulo, Uso do solo, Desenvolvimento urbano.” (BONDUKI, 2011)

BONDUKI, Nabil. O modelo de desenvolvimento urbano de São Paulo precisa ser revertido. Estudos Avançados: Dossiê São Paulo, Hoje, São Paulo, v. 25, ed. 71, jan./abr. 2011.

Disponível também em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142011000100003&lng=pt

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